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Denise Assis

Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" , "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".

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Silvio Tendler, se pudesse, hoje estaria gritando: Sem anistia!

Silvio realizou. Silvio documentou, Silvio sonhou com um Brasil decente

Silvio Tendler, se pudesse, hoje estaria gritando: Sem anistia! (Foto: Arquivo pessoal)

Ventos sombrios andam rondando os talentos da mídia e do audiovisual. Levaram Jaguar, Mino Carta e agora o nosso Silvio Tendler.  Volto no tempo para me lembrar de como nos conhecemos, e não podia ser em outra situação que não a que propiciou o nosso encontro.

Era o ano de 1980. Um comerciante da Rua Francisco Otaviano, no Posto Seis, em Copacabana, havia me contado que um grupo de meninos, dos 8 aos 14 anos fez das galerias de águas pluviais moradia. Todos os finais de semana, banho tomado, roupinhas razoáveis para a condição de menores em situação de rua, rumavam, sob a liderança dos mais velhos, para o Tívoli Parque – um mafuá chique às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. Ali, se divertiam, comiam pipoca e voltavam para a “toca”, para recomeçar o “expediente”. Sim, assaltavam turistas, numa pesca às correntes de ouro e relógios, no calçadão (antes da era dos celulares).

Fui até lá e o mais velho do grupo-me confirmou tudo. Moravam longe das famílias, às vezes lavavam carros para descolar um troco, ou simplesmente faziam “um ganho”, quando a situação estava “russa”.

Imaginei documentar o grupo, num curta, com o título: “República dos meninos”. Eles toparam – devidamente tarjados -, se deixariam filmar. Conversando com o nosso editor na época, em O Globo, Milton temer, ele me disse: “mas isso é a cara do Silvio Tendler. Liga para ele”. Liguei. Silvio, embora não me conhecesse, foi supersimpático e receptivo e quis imediatamente marcar uma ida ao “buraco”. Combinamos e lá fomos nós, num sábado pela manhã, atrás do nosso sonho e de uma realidade que perdura, infelizmente, agora com ingredientes ainda mais barra pesada.

Para nossa decepção, o comerciante que me havia relatado a história nos recebeu informando que a Polícia havia levado o líder do grupo, enquanto os menores se dispersaram correndo pelo bairro. Conseguiram escapar, mas a “república” se desfez.

Comentamos sobre o nosso desconsolo e caminhamos até um quiosque próximo. Enquanto tomávamos uma água de coco, o papo fluiu como se amigos da vida inteira. No início da conversa Silvio confessou que aceitou o convite e a conversa sobre os meninos, mas jamais faria disso um curta: “quem tem curta tem medo!”, divertiu-se. Sua ideia era, a partir desse grupo, fazer um documentário sobre a realidade dos garotos em situação de rua. 

Dali por diante, mantivemos contatos como a vida permitia. E em uma das histórias divertidas, que ele sempre que me encontrava fazia questão de lembrar, está a da festa de despedida da jornalista e vereadora Andrea Gouvea Vieira, que havia se casado com o economista Edmar Bacha e se despedia do Brasil para morar nos Estados Unidos. A festa, no Clube dos Macacos, seguia animada. A redação de O Globo, onde trabalhávamos, estava em peso. 

Lá pelas tantas, Silvio me chama para dançar. Claro, bora pra pista. E Silvio, que não perdia chance, na época um solteiro atirado, me perguntou se eu não topava ir para o seu apartamento, onde podíamos jantar, pois estava com fome. Eu, rindo, me afastei e exibi a minha barriguinha de pouco mais de cinco meses de gravidez. 

Havia um tempo que não nos falávamos, e ele não sabia da novidade. “Acho que o pai da criança não vai gostar muito de saber dessa conversa”, comentei às gargalhadas. E ele, super sem graça, também rindo muito, pediu mil desculpas, mas não havia percebido. “E você pensa que todos tem a sua barriga, Silvio Tendler?”, eu emendei. Nos divertimos muito com a situação e, a partir dali, todas as vezes que me encontrava ele perguntava: “e aí, como está aquela barriga?”. E eu dava notícias do meu filho, João.

Não nos perdemos de vista, vida a fora. Ele ia aos lançamentos dos meus livros, quando dava, eu às suas palestras e exibições de filmes. Estávamos ali, na mesma esquerda, na mesma luta, nos mesmos atos. Silvio com o seu portentoso passado de resistência, eu com a minha trajetória no jornalismo, debruçada sobre esse passado, fazendo o link com o presente comprometido e enodado pela impunidade daqueles eventos terríveis. Nos seguíamos. 

A última vez que estivemos juntos foi na temporada de sua peça, Olga. Silvio estava radiante, casa cheia e a cabeça também, repleta de planos. Silvio realizou. Silvio documentou, Silvio sonhou com um Brasil decente. Não pôde esperar o desfecho da semana que vem, mas contribuiu tanto para chegarmos até aqui, que pode seguir sua jornada em paz. Fez muito por nossa memória e somou momentos preciosos à nossa luta. Se hoje ainda pudesse se pronunciar, tenho certeza de que estaria gritando: “Sem anistia!”.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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