Quebra do pacto federativo ameaça democracia no Brasil
Governadores, polícias estaduais, milícias e disputas fiscais expõem fissuras no arranjo federativo de 1988
O pacto federativo, cláusula pétrea da Constituição de 1988, está sob ataque em múltiplas frentes: governadores que desafiam o STF, polícias militares politizadas e com vínculos milicianos, disputas tributárias que esvaziam estados e municípios, crises climáticas que testam a cooperação e crime organizado transnacional que captura territórios. A federação, que deveria ser instrumento de equilíbrio e coesão nacional, está sendo usada como arma contra si mesma — e o risco é de ruptura institucional com consequências imprevisíveis.
O pacto federativo sob ataque
O pacto federativo, cláusula pétrea da Constituição de 1988, foi concebido para garantir equilíbrio entre União, estados e municípios, blindando o país contra aventuras autoritárias e contra a fragmentação territorial. Hoje, essa engrenagem constitucional está sendo corrompida por dentro. Governadores transformam seus estados em palanques contra o Supremo, bancadas estaduais atuam como forças centrífugas no Congresso e polícias militares são arrastadas para a disputa política. O que deveria ser uma arquitetura de cooperação virou instrumento de confronto. A federação está sendo usada como arma contra si mesma.
Governadores como forças centrífugas
O caso de Tarcísio de Freitas é o retrato mais acabado da ruptura federativa em curso. Ao subir ao palanque no 7 de Setembro defendendo a anistia como “remédio para pacificar o Brasil”, e logo depois articular pessoalmente com o Congresso a aprovação relâmpago do PL 2.162/2023, o governador de São Paulo abandonou qualquer noção de neutralidade institucional. Usou o peso econômico e simbólico do maior estado do país para pressionar o Legislativo e constranger o STF, emprestando verniz de legitimidade estatal à narrativa da extrema-direita. Não foi ato simbólico: foi gesto político de confronto direto contra a União e suas instituições.
Não é um caso isolado. Em 2022, Ibaneis Rocha, então governador do Distrito Federal, foi afastado por omissão diante da invasão dos Três Poderes, expondo como elites locais podem colidir com a autoridade federal em momentos críticos. Em 2023, governadores da Amazônia entraram em rota de colisão com Brasília ao defender a exploração predatória de petróleo na Margem Equatorial. Em 2024, o governador de Roraima usou a crise energética como arma política, acusando o Executivo e o STF de “bloquear o desenvolvimento”. Em todos esses episódios, o que se vê é o mesmo padrão: estados funcionando como plataformas de insurgência política contra o pacto federativo.
A história ajuda a entender o risco. Em 1961, Leonel Brizola mobilizou o poder estadual para defender a legalidade e garantir a posse de João Goulart — era a federação usada em favor da Constituição. Já em 1964, governadores e elites regionais se alinharam às Forças Armadas e ao empresariado para minar a ordem democrática. O que ocorre hoje ecoa muito mais 1964 do que 1961: governadores atuando não como guardiões da legalidade, mas como vetores de desestabilização do poder central.
Polícias estaduais e milicianização
As Polícias Militares são forças estaduais subordinadas aos governadores. No papel, deveriam garantir a ordem pública; na prática, em diversos estados se transformaram em braços políticos de governadores e da extrema-direita. O risco é brutal: quando a autoridade local mobiliza a PM em atos, greves disfarçadas ou discursos incendiários, o que está em jogo não é segurança pública, mas a capacidade de usar uma força armada para desafiar a União e o STF.
A infiltração miliciana agrava o quadro. No Rio de Janeiro, milícias ligadas a setores da PM controlam territórios, exploram serviços clandestinos, impõem sua lei e financiam candidaturas. Esse poder paralelo mina a legitimidade do Estado e cria feudos armados que podem ser instrumentalizados contra decisões federais. É a federação corroída por dentro: quando um ente federado mantém sob seu comando instituições atravessadas pelo crime organizado, a cooperação constitucional deixa de existir.
Há ainda o fator ideológico. Pesquisas mostram forte adesão de bases policiais ao fundamentalismo religioso e à narrativa da extrema-direita bolsonarista. Essa simbiose política e religiosa cria lealdades que não são mais institucionais, mas sim pessoais e faccionais. O soldado não responde ao governador como chefe do Executivo estadual dentro da Constituição: responde à cruzada ideológica que se mistura com a política de confronto contra a União.
O risco é claro: estados se transformarem em plataformas armadas de insurgência contra o centro, com governadores investindo na politização da polícia, milícias expandindo zonas autônomas e a extrema-direita digital fornecendo a legitimidade simbólica. A federação, nesse ponto, deixa de ser pacto e vira trincheira de guerra interna.
Ruptura fiscal e guerra tributária
A dimensão fiscal do pacto federativo está sendo dilacerada por dentro. Quando a União limitou a cobrança do ICMS sobre combustíveis, energia e telecomunicações em 2022, vendeu-se a medida como alívio ao consumidor. Na prática, estados e municípios perderam mais de R$ 78 bilhões em receitas em apenas um ano, comprometendo saúde, educação e segurança. Foi uma intervenção direta na principal fonte de arrecadação estadual, sem negociação real e sem compensação estrutural. O resultado: governadores e prefeitos fragilizados, obrigados a cortar serviços enquanto a União capitalizava politicamente o alívio temporário nos preços.
Essa lógica se repete na disputa sobre os incentivos fiscais do ICMS, usados historicamente como ferramenta de atração de investimentos regionais. A tentativa de tributar esses benefícios cria insegurança jurídica, ameaça empregos e aprofunda a guerra fiscal entre estados. Mais que disputa tributária, é um processo de corrosão da autonomia: o que era competência estadual é cada vez mais submetido a controle federal, transformando a federação em palco de dependência.
A PEC do pacto federativo acrescenta outra bomba-relógio: a possível extinção de municípios pequenos considerados “inviáveis”. Estudos indicam que quase 20% das cidades brasileiras poderiam ser varridas do mapa. A justificativa técnica esconde um efeito político devastador: comunidades inteiras perderiam representação direta, ampliando a distância entre cidadãos e instituições. É o pacto federativo esvaziado no nível mais básico, o municipal, onde a democracia é mais palpável.
Quando estados e municípios perdem receitas, autonomia e até existência formal, o pacto federativo deixa de ser rede de cooperação e se torna campo de batalha. A guerra fiscal, as disputas por compensações e a ameaça de extinção municipal não são detalhes contábeis: são mecanismos de fragilização institucional que desidratam a capacidade local e abrem espaço para narrativas de confronto contra o poder central.
O crime organizado como fator federativo
O crime organizado é hoje um ator que disputa espaço dentro do pacto federativo. Nas fronteiras, facções como PCC e Comando Vermelho controlam rotas de armas, drogas e contrabando, impondo sua própria lógica em territórios onde a presença federal é frágil. Em vez de cooperação entre União, estados e municípios, o que surge é uma governança paralela, sustentada por dinheiro, armas e intimidação.
Nas grandes cidades, o fenômeno é ainda mais corrosivo: milícias transformaram-se em verdadeiros governos locais, explorando transporte, gás, internet clandestina e até voto. No Rio de Janeiro, há bairros inteiros onde a autoridade real não é a do Estado, mas a de grupos armados, muitos deles com ramificações dentro das próprias polícias. A federação, nesse cenário, deixa de ser arranjo constitucional e se converte em mosaico de soberanias concorrentes.
O elo com a política fecha o ciclo. Candidatos financiados por facções e milícias chegam a assembleias legislativas e câmaras municipais, carregando para dentro das instituições a lógica criminal que já opera nas ruas. Quando governadores dependem de pactos informais com esses grupos para manter relativa estabilidade, a linha entre Estado e crime se apaga. É a ruína do pacto federativo em sua essência: a perda do monopólio da força e da legitimidade sobre o território nacional.
Crises climáticas e federalismo de emergência
Os desastres climáticos recentes escancararam o colapso da coordenação federativa. As enchentes no Rio Grande do Sul, em 2024, mostraram um Estado devastado que não conseguiu articular respostas rápidas com a União e os municípios. Enquanto famílias perdiam casas e cidades inteiras eram soterradas pela lama, autoridades federais e estaduais disputavam diante das câmeras quem deveria agir primeiro e quem tinha falhado. No vácuo da cooperação, floresceu a guerra política, com governadores acusando Brasília de lentidão e parlamentares transformando a tragédia em palanque.
Esse “federalismo de emergência” é um campo fértil para a erosão institucional. Em vez de coordenação, prevalece o cálculo eleitoral. Fundos de defesa civil viram moeda de barganha, prefeitos se sentem abandonados e a população alimenta o ressentimento contra “Brasília”, como se o centro fosse inimigo e não parte da solução. O resultado é um ciclo de deslegitimação mútua: a União acusa estados de má gestão, estados acusam a União de negligência, e o pacto federativo se fragmenta no momento em que deveria ser mais sólido.
A desinformação amplifica o colapso. Nas enchentes, circulou nas redes a narrativa delirante de que “tecnologias estrangeiras estavam manipulando o clima” — fake news que viralizou em grupos bolsonaristas. Essa distorção transforma catástrofe em combustível político, desloca responsabilidades e oferece à extrema-direita digital mais um instrumento de corrosão da confiança nas instituições. O pacto federativo, já pressionado por omissões e disputas, é atacado também no plano simbólico.
A guerra digital e o federalismo fragmentado
A ausência de uma regulação nacional robusta para dados e plataformas digitais abriu espaço para um federalismo digital improvisado, em que estados e até municípios tentam criar suas próprias regras. Governos locais lançam sistemas de monitoramento de escolas, decretos de proteção de dados e convênios com big techs sem coordenação central. O resultado é uma colcha de retalhos normativa: cada ente reage à sua maneira, sem integração, e muitas vezes em choque com a União.
Essa fragmentação cria riscos imediatos. Primeiro, mina a isonomia: cidadãos de diferentes estados passam a ter direitos e proteções distintas diante das plataformas. Segundo, enfraquece a capacidade investigativa, já que crimes digitais e fraudes — como os 2,1 milhões de estelionatos registrados em 2024 — não respeitam fronteiras estaduais. Terceiro, abre brecha para capturas privadas: estados endividados assinam parcerias com empresas de tecnologia que assumem controle de dados sensíveis, sem supervisão nacional.
O pacto federativo se quebra também no ciberespaço. Em vez de coordenação estratégica para proteger soberania informacional, temos um arquipélago de normas locais, vulnerável a pressões políticas e a lobbies corporativos. Num país em que a guerra híbrida é realidade, essa fragmentação não é detalhe técnico — é risco de sobrevivência institucional.
Judicialização e desobediência crônica
O Supremo Tribunal Federal se transformou no árbitro permanente de uma federação em guerra consigo mesma. Estados e municípios, ao se sentirem prejudicados por medidas federais ou por disputas fiscais, recorrem cada vez mais ao STF. A judicialização virou regra, não exceção. Só que a crise não para aí: em vários casos, governadores e corporações simplesmente ignoram ou reinterpretam decisões da Corte, instaurando um estado de desobediência crônica.
O exemplo mais claro é a ADPF 635, que estabeleceu parâmetros rígidos para operações policiais no Rio de Janeiro. Mesmo após decisões firmes do Supremo, as forças de segurança continuaram atuando em desacordo, multiplicando chacinas e violações. Não é apenas descumprimento: é a normalização da insubordinação institucional, sinal de que parte dos entes federativos já não reconhece plenamente a autoridade do tribunal máximo do país.
Esse comportamento se repete em temas fiscais, ambientais e de segurança pública. Cada decisão contestada e cada ordem descumprida corroem um pouco mais o pacto federativo. O que deveria ser instância de equilíbrio e cooperação acaba funcionando como linha de frente de uma guerra judicial permanente. O STF, ao invés de garantir estabilidade, é obrigado a apagar incêndios contínuos — e cada vez com menos eficácia diante da resistência de governadores e bancadas regionais.
O pacto federativo em colapso
Todos os riscos apontam para o mesmo ponto: a federação brasileira já não funciona como pacto de cooperação, mas como campo de batalha. A dimensão fiscal foi esvaziada por medidas que retiram receitas dos estados e ameaçam extinguir municípios. A dimensão institucional é corroída por governadores que se colocam como vetores de confronto contra o STF e o Executivo. A dimensão coercitiva se fragmenta com PMs politizadas e milícias transformadas em governos paralelos. A dimensão criminal expande soberanias concorrentes em fronteiras e centros urbanos. A dimensão climática revela o fracasso da coordenação em momentos de emergência. E a dimensão digital amplia a vulnerabilidade nacional com normas locais desconexas e captura corporativa de dados.
O resultado é um pacto federativo que não apenas range — ele já se quebrou em múltiplos pontos. Cada decisão ignorada, cada repasse cortado, cada PM mobilizada em ato político e cada território controlado por milícias são estilhaços que corroem a cláusula pétrea da Constituição de 1988. A federação está em colapso funcional: não garante mais equilíbrio, não distribui mais poder, não protege mais o Estado democrático de direito.
Conclusão – A federação como trincheira ou como ruína
O pacto federativo nasceu em 1988 como blindagem contra autoritarismos e como alicerce da democracia. Hoje, transformou-se em trincheira de guerra interna. Governadores usam estados como palanques contra o STF, polícias estaduais se deixam capturar por ideologias extremistas e milícias, a União esvazia receitas locais e crises climáticas viram armas políticas. Cada fissura isolada poderia ser corrigida; juntas, elas desenham um colapso em curso.
O risco não é futuro, é presente: a federação está sendo usada contra si mesma. A cláusula pétrea que deveria unir o país é instrumentalizada para deslegitimar instituições, corroer a cooperação e alimentar projetos autoritários. O Brasil precisa decidir se o pacto federativo será trincheira de resistência democrática ou ruína que abrirá caminho para a erosão definitiva do Estado de Direito.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



