Os negócios da Sabesp
A concentração de poder nas mãos de uma empresa privada exige controle, planejamento e compromisso com o bem comum.
A Sabesp comprou 70% da Emae por R$ 1,1 bilhão. Se não fosse a gravidade do número crescente de pessoas intoxicadas por bebidas contaminadas por metanol, esse seria um dos grandes assuntos da semana. O fato é que pouco se falou sobre essa transação.
A EMAE, antiga estatal, opera quatro usinas de geração de energia em São Paulo. São 960,8 megawatts de potência instalada. A principal delas é a Henry Borden, aos pés da Serra do Mar, com 889 megawatts. Além disso, administra as principais represas da Grande São Paulo, Billings e Guarapiranga, e gerencia o sistema de macrodrenagem da Região Metropolitana, para controle de cheias.
À primeira vista, a aquisição pode parecer só mais um movimento empresarial, mas há elementos sobre os quais devemos nos debruçar em uma análise minuciosa, sob o risco de sermos pegos de surpresa num futuro próximo.
A Sabesp, desde a década de 1970, é a principal empresa de saneamento básico do Estado e atende cerca de dois terços dos municípios e da população. Detém o monopólio na Região Metropolitana de São Paulo, com exceção de São Caetano e Mogi das Cruzes. Com a compra da Emae, a companhia dá um passo estratégico e amplia a sua faixa de domínio também para a produção de energia elétrica.
Agora, vamos ligar os pontos: com a aquisição da Emae, uma única empresa, neste caso a Sabesp, passará a ter o controle da água e da produção de eletricidade, dois itens estratégicos para a nossa vida cotidiana. Talvez essa seja uma concentração de poder perigosa nas mãos de uma empresa privada.
E sendo a Sabesp uma companhia privatizada, que busca o lucro, interesses econômicos poderiam estimular a priorização da produção energética em detrimento da qualidade da água em nossos reservatórios?
Essa é uma pergunta que precisa ser feita. E para não ficarmos vulneráveis a esse tipo de risco, devemos revisar, e eventualmente aprimorar, os mecanismos de controle já existentes.
Vale lembrar que a Sabesp é gerida pela Equatorial, uma empresa que tem a energia elétrica como vocação. É com esse foco que ela opera em Alagoas, Amapá, Goiás, Maranhão, Pará, Piauí e Rio Grande do Sul. Talvez isso ajude a explicar o apetite da Sabesp pela Emae.
Desde os anos 1990, a legislação ambiental limita o bombeamento das águas do Pinheiros para a Billings para o controle de enchentes. A estratégia impede que a represa seja contaminada pelas águas sujas do rio, mas reduz, de acordo com a própria Emae, em aproximadamente 75% a energia produzida em Henry Borden.
À imprensa, a Sabesp disse que, com a aquisição da Emae, pretende construir estações de tratamento e bombeamento e ter a operação integral do Projeto Billings, que prevê o uso dos rios Tietê, Pinheiros e da Billings tanto para o abastecimento de água como para a geração de energia elétrica na Henry Borden.
Esta pretensão não é nova. O governo do Estado fez duas tentativas fracassadas de despoluição do rio Pinheiros pelo processo de flotação, com grande desperdício de recursos públicos e com o mesmo objetivo de retomar a reversão do Tietê e do Pinheiros para a Billings.
O método da flotação é adequado apenas quando todo o esgoto passa por Estações de Tratamento e a flotação se limita a retirar a carga difusa de poluentes do rio. Não é o caso da Região Metropolitana, onde a Sabesp lança imensos volumes de esgotos sem tratamento.
A parceria da Sabesp com a EMAE poderia ser interessante se o objetivo se limitasse à despoluição da Guarapiranga e da Billings. Esta última tem um volume de água equivalente ao sistema Cantareira que não pode ser aproveitado para abastecimento público devido à qualidade da água, inadequada para captação e tratamento. O motivo é que, durante décadas, os poluentes gerados na Região Metropolitana foram despejados no manancial através do Pinheiros.
No entanto, a intenção não é ambiental. Ao contrário, visa obter lucros extraordinários por meio da utilização plena da capacidade de geração elétrica da Usina Henry Borden, ainda que isso coloque o manancial em risco.
Estes são planos futuros, que demandarão um amplo debate com a sociedade e total transparência sobre os riscos envolvidos. A nós, cabe estarmos preparados e mobilizados para a discussão.
O problema é que o passado recente não inspira confiança. Desde que a Sabesp foi privatizada, o que vimos não foi um salto de eficiência, como prometido, mas um retrocesso visível.
Hoje, bairros inteiros sofrem com falta d’água constante. A pressão na distribuição é reduzida durante as madrugadas, prejudicando sobretudo as regiões mais pobres e distantes, onde a ausência de caixa d’água transforma economia operacional em violação do direito básico à água.
Há registros de esgoto em grande quantidade sendo lançado sem tratamento no Rio Tietê. E o valor das contas disparou, principalmente daqueles em situação de maior vulnerabilidade. Como se não bastasse, 10% dos funcionários da companhia foram demitidos logo no início da privatização.
É preciso alinhar discurso e prática. Não podemos viver num mundo de meias verdades. É preciso ter transparência. E isso vale para a Sabesp na gestão do saneamento e, agora também, da energia. E ao Governo Tarcísio, cabe fiscalizar.
Privatizar, por si só, não é sinônimo de progresso. A compra da Emae escancara esse dilema. A antiga estatal de energia enfrenta dificuldades sob a gestão privada, com dúvidas sobre a capacidade financeira de seus controladores. E foi justamente a partir de uma execução de garantia que a Sabesp assumiu o controle, em mais uma manobra opaca do mercado financeiro.
A água que sai da nossa torneira e a energia que alimenta nossas casas não são commodities. São direitos fundamentais. E quando esses direitos passam a ser negociados no mercado como ativos financeiros, é nosso dever enquanto sociedade acompanhar cada passo com olhos atentos e senso crítico.
É hora de abandonar a zona de conforto das promessas fáceis. Transparência tem que ser obrigação, e a Sabesp precisa prestar contas à população, não apenas aos investidores. E o Governo do Estado deve fiscalizar com rigor e responsabilidade.
A concentração de poder nas mãos de uma empresa privada, ainda mais quando essa empresa administra recursos estratégicos exige controle, planejamento e compromisso com o bem comum.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.


