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Boaventura de Sousa Santos

Sociólogo português

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Os BRICS+ e Confúcio

Sabedorias não ocidentais podem inspirar um novo internacionalismo mais justo, se os BRICS+ não repetirem os erros do capitalismo ocidental

Cúpula do BRICS em Kazan, Rússia (Foto: Alexander Nemenov/Pool via Reuters)

Nota de conjuntura: à primeira vista este texto é um exercício fútil ante o recente ataque de Israel e dos EUA ao Irã, um dos novos membros dos BRICS+. Lido com atenção, este texto concebe tal ataque como talvez o último estertor do mundo unipolar hegemonizado pelos EUA e anuncia a esperança possível após o seu colapso. Mas como o velho ainda não desapareceu totalmente e o novo ainda não emergiu completamente, assistiremos durante este tempo de transição às monstruosidades de que falava António Gramsci. O ataque ao Irão é uma delas.

Uma precisão conceitual - Ideologia é um conjunto de ideias ilusórias consideradas necessárias para suportar ou fazer suportar o insuportável. O insuportável tem sempre a ver com a desigualdade e a discriminação contestadas (não naturalizadas) no seio de uma dada comunidade. Religião é um conjunto de ideias de transcendência deste mundo (uma transformação final neste ou noutro mundo) acompanhado pelos meios para atingir tal transcendência, que incluem regulações do corpo (sobretudo, sexo) e da convivência. Tem muitas vezes a mesma função que a ideologia. Sabedoria é um conjunto de ideias assentes na experiência do insuportável que oferece alternativas quase sempre impopulares junto dos detentores do poder. É um processo de cultivação pessoal para se aproximar dessa realidade última (o céu de Confúcio) com o objetivo de distinguir com clarividência entre o bem e o mal. Neste texto, estes três conceitos são entendidos como entidades porosas e com múltiplas pontes entre elas na vida dos povos.

Desde o século XV, a ideologia dominante no mundo é eurocêntrica e o seu domínio corresponde à ascensão do colonialismo-capitalismo-imperialismo ocidentais. Essa ideologia é complexa, mas os seus pilares fundamentais são o liberalismo (livre comércio, individualismo, propriedade privada, Estado e direito como monopólios da violência legítima, democracia liberal), a ciência moderna como único conhecimento rigoroso, racionalismo (como racionalidade pragmática), universalismo, progresso linear, direitos humanos, secularismo. É próprio da ideologia dominante (precisamente porque é dominante) tanto revelar como ocultar. Oculta sobretudo as práticas que a contradizem, e é por isso muitas vezes adotada pelas classes e grupos sociais dominados, cujos interesses mais são negados por ela. Por essa razão, a dominação tanto se exerce pela violência, como pelo consentimento ou passividade dos dominados. Em certas circunstâncias, os dominados podem apropriar-se tática ou seletivamente da ideologia dominante e utilizá-la nas suas lutas de resistência contra a dominação. Tem acontecido isso frequentemente com as ideias de direitos humanos e de democracia.

Após cinco séculos de dominação, o colonialismo-capitalismo-imperialismo ocidental dá sinais de ter entrado em declínio. Essa dominação sempre foi objeto de contestação parcial (comunismo, movimento operário, libertação política das colônias, terceiro-mundismo), mas acabou sempre por se impor. Até hoje. A vertigem da guerra que paira sobre o mundo é um dos sinais do declínio irreversível da dominação ocidental. O outro é a emergência dos BRICS+. A acumulação capitalista ocidental enfrenta uma crise que orienta a sua busca de rentabilidade para áreas não produtivas, sejam elas a especulação financeira ou a indústria armamentista e de vigilância. A economia de cassino e a economia de morte dão as mãos numa última tentativa de evitar ou adiar o colapso final.

Os BRICS+ - Entretanto, emerge no horizonte com pujança sem precedentes uma acumulação capitalista não-ocidental protagonizada por países que, ou foram colônias europeias ou foram humilhados, dominados ou invadidos pelas potências ocidentais ao longo dos séculos. Refiro-me aos BRICS e sobretudo aos BRICS+ que, além dos países que compõem a sigla (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), integram hoje onze grandes economias emergentes e estão em vésperas de integrar muitos outros países. Representam hoje 49,5% da população mundial, cerca de 40% do PIB mundial, e 26% do comércio global. Já ultrapassaram o grupo dos países mais desenvolvidos, o G7, que representam 30% do PIB mundial e 10% da população mundial. O Brasil assumiu em janeiro a presidência do grupo e escolheu como tema “Fortalecer a cooperação entre o Sul global com vista a uma governação mais inclusiva e sustentável”.

Ao contrário do que aconteceu com o terceiro mundismo (nascido na Conferência de Bandung de 1955), não está em discussão a opção entre capitalismo e socialismo. Está em causa uma alternativa capitalista não-ocidental que compita eficazmente com o colonialismo-capitalismo-imperialismo ocidental. Por outras palavras, está em causa a criação de um mundo multipolar, onde o mundo ocidental é convidado a conviver em pé de igualdade, pela primeira vez nos últimos cinco séculos, com o mundo não-ocidental. Não quer dizer que todos países pertençam com a mesma intensidade ao mundo não-ocidental (basta pensar no Brasil), mas a orientação dominante é não-ocidental. Como disse o presidente da África do Sul durante o período em que este país presidiu aos BRICS em 2023, “não queremos que nos digam o que é bom para nós, queremos que as linhas de fratura da arquitetura da governança mundial sejam redesenhadas, reformadas, transformadas… Queremos participar no processo de criação de uma comunidade mundial mais justa, inclusiva e multipolar”. Tenho defendido que a expansão dos BRICS e a consequente construção de um mundo multipolar podem ser um fator de paz, na medida em que podem conter a deriva bélica em que o mundo ocidental está mergulhado, agora hegemonizado por um novo “eixo do mal”: EUA, Europa e Israel.  

Levantam-se, no entanto, várias questões. Se não se propõem o socialismo, não acabarão os BRICS por reproduzir a matriz colonialismo-capitalismo-imperialismo que caracteriza o mundo ocidental há séculos, uma matriz que, em resumo grosseiro, se caracterizou pelas relações desiguais (esbulho, ludíbrio, má-fé) entre o centro e a periferia? A ideologia que deu coesão à época moderna ocidental terá uma ideologia correspondente nos BRICS? E, em caso afirmativo, que ideologia será essa? Dada a experiência histórica desses países, estarão eles interessados numa ideologia diferente ou num novo conceito de ideologia? Pode o capitalismo conviver com várias ideologias, uma questão que se pôs a partir dos anos de 1980 com a emergência econômica do Japão e da Coreia do Sul?

Entra o confucionismo - A ideologia dominante do mundo ocidental foi em grande medida produzida pelos países dominantes, sobretudo Inglaterra e França. Nos BRICS o país dominante é a China. Antes do alargamento, a China constituía 70% da riqueza produzida nos BRICS. A economia chinesa é cinco vezes maior que a indiana, oito vezes maior que a russa, nove vezes maior que a brasileira e quarenta e três vezes maior que a da África do Sul. Antes do alargamento, as trajetórias ideológicas dos diferentes países eram extremamente heterogêneas: imperialismo, taoísmo, confucionismo, marxismo na China; hinduísmo (swaraj, swadeshi), budismo, Islã na Índia; cristianismo ocidental, desenvolvimentismo, soberanismo (tensão permanente entre sub-imperialismo e teoria da dependência) no Brasil; imperialismo, cristianismo ortodoxo oriental, comunismo primitivo, marxismo na Rússia. Depois do alargamento, a componente islâmica amplia-se enormemente. Mas, sobretudo, aumenta a diversidade das ideologias. Basta pensar na antiguidade egípcia e persa (Zoroastro). Escusado será dizer que estas designações contêm no seu seio uma enorme diversidade interna, por vezes, antagônica.

Qualquer que seja a importância da ideologia dominante, vou partir da hipótese de que a ideologia dominante é a ideologia do país dominante e que, ao contrário do mundo ocidental, os BRICS – tal como os seus dirigentes têm dito em múltiplas declarações – desejam levar a cabo uma mudança no sistema mundial consentânea com a nova ideologia. Ora a China de hoje é oficialmente confucionista. O primeiro Instituto Confúcio foi inaugurado em Seul (Coreia do Sul) em 2004. Existem hoje 548 Institutos Confúcio no mundo onde se ensina a língua e cultura chinesas e se organizam eventos culturais e intercâmbios educacionais.

Cautelas propostas pelas epistemologias do sul - É de perguntar se o conceito de ideologia é adequado para descrever ideias dominantes em civilizações muito mais antigas que a civilização ocidental, tanto mais que durante séculos tais civilizações viveram isoladas. No caso do confucionismo estamos a falar de uma tradição filosófica com mais de 2,5 mil anos. Quando tais civilizações entraram em contato com a civilização ocidental foram postas numa posição de inferioridade imposta pela superioridade das armas ocidentais. Acresce que o que chamamos cultura ocidental (o seu pilar da antiguidade clássica grega) não existiria se não nos tivesse sido transmitida pela cultura islâmica no período do seu apogeu (Bagdad, séculos IX-XI e Al-Andaluz, sobretudo nos séculos XI-XIII). Se pensarmos no confucionismo, o seu autor Confúcio (nascido em 551 AC), à semelhança do que acontece em geral como os verdadeiros sábios, não foi bem aceito no seu tempo. Foi breve o período em que foi reconhecido pelos governantes, foi forçado ao exílio e foi seguido por um pequeno número de discípulos. Ao longo dos séculos, Confúcio rivalizou com o taoísmo (Lao Tze, outro enigmático sábio que conheceu o exílio e só escreveu a sua obra, Tao-te-Ching, porque foi obrigado a escrevê-la como condição para o deixarem sair do Estado), e foi ora ardorosamente aceito, ora violentamente rejeitado. Vejamos o período mais recente. Note-se que o que conhecemos de Confúcio (tal como de Sócrates) foi o que os discípulos registaram. Neste domínio, o seu grande discípulo Mêncio (século IV AC) tem particular importância. No século II AC, o confucionismo foi adoptado como a ideologia oficial do império chinês, a sua popularidade teve múltiplos percalços ao longo dos séculos, mas só viria a ser radicalmente contestado no século XX da nossa era. A longa dinastia Qing (1644-1911) colapsou em grande parte devido às guerras do ópio da década de 1840 e deu origem à República da China que hoje subsiste ainda em Taiwan. No continente, a partir de 1920, a luta entre o partido comunista (em que Mao-Tsé-Tung se viria a distinguir) e o partido nacionalista de Chiang Kai-shek duraria até à vitória dos comunistas em 1949.

Comunismo e confucionismo - A contestação mais radical do confucionismo começou nas primeiras décadas do século XX com a proclamação da República em 1912. Enquanto uns consideravam que o confucionismo era a razão do atraso da China – a incapacidade de esta se tornar um Estado-nação moderno – outros pensavam que o confucionismo podia ser renovado para se adaptar aos novos tempos (neo-confucionismo). A República Popular da China foi estabelecida em 1949 sob a égide do Partido Comunista Chinês.

A primeira nota a salientar é que o confucionismo, sendo muito antigo na China, é muito recente no repertório ideológico da República Popular da China. Realmente, pode dizer-se que em 1949 os comunistas consideravam que o confucionismo estava extinto, tal como qualquer outra ideologia reacionária. O confucionismo era uma “ideologia feudal”. A segunda nota (não contraditória com a anterior) é que o comunismo chinês tem de ser entendido no contexto de uma civilização moldada pelo confucionismo. Isto significa, antes de tudo, que a prosperidade ou a ruína do país depende muito da virtude ou do vício dos governantes e que o governo deve procurar a harmonia social – entre a necessidade de governo, já que os indivíduos só procuram satisfazer os seus interesses pessoais (legalismo), e a ideia de que a natureza humana é boa e sociável e que o governo, como algo separado da sociedade, deve desaparecer (taoísmo). Uma mistura complexa e até contraditória entre hierarquia e igualitarismo, entre conflito e moderação, entre autoridade e consulta/moderação/tolerância. Confúcio concebia a sociedade à imagem da família, em que o amor filial (o respeito pelos mais velhos) e a autoridade do pai são fundamentais para manter a harmonia social. A educação é fundamental em Confúcio, tal como a integridade moral dos governantes, os quais devem igualmente ser educados para seguir os princípios da boa governação confucionista.

A justa revolta contra maus governantes está presente em Confúcio e a ideia da sociedade hierárquica coexiste com uma longa tradição de igualitarismo camponês, frequentemente associado a rebeliões com base em associações de muitos tipos, muitas delas secretas (por exemplo, as tríades). Uma dessas rebeliões ocorreu em Hunam 1926-1927 e foi testemunhada pelo jovem Mao Tse Tung, certamente uma influente experiência da sua juventude reflectida na versão do marxismo que viria a elaborar: os camponeses como força revolucionária, o apoio às comunas rurais, a linha de massas assente na experiência das guerrilhas camponesas. Mao, tal como Confúcio, considerava que a natureza humana era essencialmente boa e que a educação era fundamental para a fazer florescer. Tal como Confúcio, Mao considerava que a superioridade do governo residia numa superioridade moral assente no “meio dourado” – o princípio do equilíbrio entre extremos. Tal como em Confúcio, o “novo homem” de Mao emerge de uma sociedade cuja fundação reside na solidariedade comunitária. Mas tal como sucede quase sempre com as ideologias, a oposição a Mao também se reivindicava da fidelidade ao confucionismo.

A Revolução Cultural e o período posterior - A Revolução Cultural (1966-69/76) marcou mais um fim do confucionismo. Este era apenas invocado por aqueles que se opunham à Revolução Cultural, salientando o modo como Confúcio punha a humanidade e a justiça acima do conflito. E embora para Mao a oposição fosse menos confucionista do que revisionista, isto é, constituída por seguidores do comunismo soviético de Khrustchev, a campanha anti-confucionista acabaria por dominar: Confúcio, o inimigo número um da China comunista. Logo depois da morte de Mao, os grandes executores da Revolução Cultural (o Bando dos Quatro) foram presos. Com Deng Xiaoping, a aproximação ao Ocidente coincidiu com a progressiva reabilitação do confucionismo (templos, mosteiros, autorização para estudar Confúcio), considerado uma parte importante da cultura tradicional chinesa. Particularmente depois dos massacres de Tianamen (1989), o questionamento do comunismo criou um vazio que foi sendo preenchido pelo confucionismo. Surgiu uma nova vaga de “febre de Confúcio”. Em 2006, o livro de Yu Dan sobre “Reflexões sobre os Analectos” vendeu três milhões de exemplares em quatro meses. Trata-se de uma visão asséptica de Confúcio onde a vertente crítica e de rebelião contra governos injustos desaparece. Confúcio tem vindo nas duas últimas décadas a ser utilizado para sublinhar três ideias que o PCC tem vindo a promover: o patriotismo/nacionalismo; a China como uma das grandes civilizações mundiais; a sociedade harmoniosa como condição de estabilidade (e, consequentemente, o desestímulo do dissenso). Foi neste contexto que a partir de 2004 surgiram os Institutos Confúcio.

O Confucionismo e os BRICS - Que confucionismo trará a China para o seio dos BRICS? Estou certo de que será a versão delicada e sentimental de Yu Dan. Talvez com acentuação da tolerância, do compromisso, da harmonia, do respeito mútuo, da observação das regras acordadas, do auto-controlo, o que, em si mesmo, é muito necessário no mundo bélico, anômico, distópico e auto-destrutivo, em que o mundo sob a influência dos EUA está a entrar. Por esta razão, e pela multipolaridade com músculo que os BRICS prometem, justifica-se o que acima afirmei sobre os BRICS como factor de paz. E, de facto, os BRICS recusaram seguir a posição ocidental sobre a guerra da Ucrânia, sobre as sanções à Rússia, estão a tomar medidas importantes para que a economia mundial não dependa do dólar – base da hegemonia e poder de chantagem dos EUA – e estão a consolidar um banco de desenvolvimento cuja lógica de operação (à luz dos documentos oficiais) é diferente da lógica das instituições financeiras internacionais, como o FMI e o Banco Mundial.

Mas será isso suficiente para criar uma alternativa sustentável ao capitalismo ocidental? Duvido muito. Para justificar as minhas dúvidas, socorro-me de Confúcio. Um dos famosos aforismos de Confúcio diz assim:  

Ninguém está livre de cometer erros. O importante é não cometer o mesmo erro duas vezes”

Capitalismo ocidental: o modo como se implantou o capitalismo ocidental teve, entre muitas outras características, a combinação do capitalismo com colonialismo, ou seja, com a inscrição a ferro e fogo de uma linha abissal na comunidade humana: a linha que separa os seres humanos tratados como plenamente humanos (cidadãos, colonos europeus) dos seres humanos tratados como sub-humanos (os povos colonizados). Essa desvalorização não só justificou a degradação ontológica de grande parte da população do mundo, como justificou a escravatura, o roubo da terra, o esbulho, a despossessão, a super-desvalorização do trabalho, o racismo, o ludíbrio, os contratos desiguais. Tudo isso consolidou a estrutura do sistema mundial entre um centro e muitas periferias e semi-periferias caracterizado por permanentes transferências de valor das periferias para o centro, ou seja, das maiorias empobrecidas para as minorias enriquecidas. Até hoje.

Capitalismo dos BRICS: a retórica das relações internacionais no seio dos BRICS – a cooperação Sul-Sul – é totalmente oposta ao sistema do capitalismo ocidental. Mas quanto à prática? Os autores que têm estudado de perto os contratos de cooperação entre os BRICS e as suas periferias têm vindo a chamar a atenção para o facto de que, pese embora a diferença retórica, as cláusulas concretas reproduzem muitas das características das relações desiguais que sempre caracterizaram o capitalismo ocidental. Vijay Prashad fala de um “neoliberalismo com as características do Sul” e Patrick Bond tem recorrido ao conceito de subimperialismo, cunhado pelo grande sociólogo brasileiro Ruy Mauro Marini para caracterizar as relações dos BRICS com as suas periferias.

No quadro teórico que tenho vindo a desenvolver, o capitalismo não é sustentável sem colonialismo. Penso, no entanto, que a história dos BRICS ainda não passou das primeiras páginas e que os intelectuais solidários têm de evitar juízos prematuros e estar preparados para rever as suas teorias, em vez de desvalorizar as práticas que as contradizem. Em todo o caso, uma hermenêutica de suspeita sobre as práticas futuras dos BRICS justifica-se plenamente como forma de pensamento prudente, muito ao jeito de Confúcio. Trata-se de insistir com quem trata da cooperação internacional promovida pelos BRICS que tenha sempre presente o aforismo de Confúcio: “não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti”.

Confúcio e as epistemologias do sul: uma ecologia de saberes - Para mim, a linha mais promissora do projecto dos BRICS+ reside na oportunidade que é dada aos povos que compõem os BRICS+ (não necessariamente aos governos) de construir uma conversa da humanidade muito mais ampla que a que o mundo ocidental proporcionou nos últimos cinco séculos. Uma conversa mais ampla e diferente. O mundo ocidental sempre concebeu a diversidade cultural, etno-racial e epistêmica do mundo dentro de uma matriz de diferenças hierárquicas. Ora a diferença é sempre reconhecida como superior ou inferior, sendo que o Sul global sempre foi o lado inferior da diferença. Pelo contrário, os BRICS+, se conhecerem essa história (como bem recomenda Confúcio), poderão agora promover diferenças não-hierárquicas, uma diversidade intercultural de tipo novo. Se essa conversa da humanidade for encorajada, ela contém em si preciosos incentivos para credibilizar alternativas anticapitalistas e anti-colonialistas. Isso será possível se os ensinamentos de Confúcio forem articulados com as sabedorias, cosmovisões e filosofias não-eurocêntricas que sobreviveram ao epistemicídio imposto pela modernidade ocidental.

Não se trata de olhar para o passado de maneira nostálgica. Trata-se de olhar para o passado com o objetivo de ver o futuro. Esta ideia é tão central em Confúcio como na filosofia dos camponeses africanos e dos povos indígenas e afrodescendentes da América latina. Do que se trata é de construir o que designo por ecologias de saberes com vocação anticapitalista e anti-colonialista. Identifico algumas das ideias mais promissoras:

1 - As virtudes em Confúcio incluem a humanidade/benevolência, honestidade/integridade, conhecimento/sabedoria, fidelidade/respeito pelos mais velhos, prudência/observação dos rituais. 

A humanidade/benevolência sem linhas abissais está presente em todas as sabedorias não-ocidentais. Consiste em tratar todos os humanos de forma plenamente humana. Está na base da filosofia do Ubuntu da África Austral (“eu sou porque tu és”). 

O conhecimento/sabedoria é a condição para promover  a moderação entre extremos e seguir o Caminho (“quem não estuda não tem o direito de falar”). A fidelidade/respeito pelos mais velhos (o outro lado do amor filial) é o princípio da coesão das comunidades que se sentiram ameaçadas pelo colonialismo ocidental e ainda hoje sustentam a solidariedade das famílias à beira do caos da sobrevivência. A prudência/observação dos rituais visa construir a harmonia sem obediência cega. Hoje em dia, a observância dos rituais pode ser tanto o respeito pelos princípios da democracia, do Estado de Direito e das garantias constitucionais e processuais, como o respeito pelos tratados internacionais e pelo primado da convivência pacífica.

Assistimos desarmados ao desígnio da extrema-direita de destruir esses rituais: por exemplo, recorrendo a insultos e à violência física nos parlamentos. No plano internacional, assistimos igualmente desarmados às violações mais brutais do direito internacional e da convivência pacífica, do genocídio de Gaza ao ataque ao Irão (um dos novos membros do BRICS, é bom recordá-lo).

Confúcio+, isto é, o confucionismo intercultural numa ecologia de saberes com os saberes próprios dos de todos os povos que integram os BRICS+, pode ser um instrumento ideológico para combater eficazmente esses desígnios. Dizia ele aos seus discípulos: “um governo opressivo é mais violento que o tigre”. Se os BRICS levarem a sério esta filosofia, estarão equipados para lutar contra a fúria da guerra que domina hoje o mundo ocidental. Uma fúria que inventou armas de destruição maciça para destruir o Iraque e que, vinte anos depois, inventa a bomba atómica do Irão para destruir o Irão.

2 - Segundo Confúcio, a bondade da natureza humana é dada aos humanos pelo céu, mas o céu não é um deus personalizado. É uma entidade semi-naturalizada, uma realidade última. Será o céu confucionista muito diferente da Pachamama, – a mãe-terra dos indígenas de Abya Ayala? Ou da natura naturans de Espinosa? O respeito pelo céu concebido como transcendência do humano corporizado em natureza demasiado humana pode ser a solução contra o colapso ecológico para que caminhamos.

3 - Confúcio é o filósofo do auto-controlo, da prudência, do não falar antes de investigar. Quando os discípulos lhe perguntaram o que era o conhecimento, Confúcio respondeu um século antes de Sócrates e milénio e meio antes de Nicolau de Cusa: “é saber o que conheço e saber o que não conheço”. 

4 - Confúcio+, ou seja, a ecologia de saberes construída a partir do confucionismo, com o confucionismo e contra o confucionismo é um projecto de futuro a partir de uma base sólida fundada há 2500 anos. É um projecto em curso que deve incluir todas as conquistas que se foram consolidando ao longo dos séculos, muitas delas promovidas pelo mundo ocidental. Por exemplo, o debate sobre os direitos das mulheres é hoje um tema de debate dentro do confucionismo. Se por um lado se critica o preconceito de Confúcio contra as mulheres, por outro chama-se a atenção para a sua ética de cuidado reivindicada pelas feministas. Outro debate com grande potencial intercultural centra-se na relação entre valores confucionista e direitos humanos. O confucionismo permite eliminar o viés individualista que subjaz aos direitos humanos, ditos universais mas de raiz eurocêntrica, e, sem os eliminar, permitir o reforço dos direitos económicos sociais e culturais, atualmente sob ataque por parte do neoliberalismo.

Por todas estas razões, os BRICS+ não são uma aposta perdida. Só o serão se os povos que os integram desperdiçarem a oportunidade de fundar um novo internacionalismo não-eurocêntrico com base numa educação nova assente nas epistemologias do sul. Talvez a maior lição de Confúcio seja esta: “o amor do bem sem o amor da educação termina em estupidez”.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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