O Trump Mítico: o Narciso Incendiário
O Narciso Mítico, dependendo de seu humor, pode, a qualquer momento, autorizar ataques de Kiev a Moscou e São Petersburgo com mísseis de longo alcance
A notável análise de Trump de autoria de Alastair Crooke, no contexto do mito como geopolítica, nos deixou com muito assunto para reflexão. Não há como negar “a extraordinária capacidade de Trump de dominar o discurso” em escala global, nem sua capacidade de “fazer com que as pessoas se curvem à sua vontade” – criando assim o caos total no tabuleiro geopolítico. Alastair ressalta que Trump vem, com grande habilidade, “usando imagens míticas” – na verdade arquétipos toscos – para fazer valer a sua (itálicos meus) narrativa. A única narrativa.
Mas Trump talvez não seja exatamente dionisíaco, se comparado ao apolínio Putin, ele seria mais como um Narciso Afogado (em um lago que ele próprio criou). E quando se trata de iconografia pop, ele certamente não seria o Padrinho do Soul, James Brown, e sim mais parecido com o Village People – que eram uma paródia.
O aspecto mais perturbador de Trump, o Mito que se Fez por Si Mesmo, é o fascínio que aquele culto àmorte do Oeste Asiático exerce sobre sua imaginação. A absoluta normalização do genocídio perpetrada por Trump tornou cúmplice a totalidade da civilização ocidental, Alastair, mais uma vez, nos faz lembrar que a “sede de sangue em Gaza” despertada pelo Torá está levando o “sionismo extremista e messiânico” à mais pura “barbárie”. É nesse ponto que estamos hoje – com uma Licença para Matar outorgada por um Deus cruel e intolerante: Iavé.
Muito abaixo das esferas míticas onde Trump não teme pisar, canalhas posando de “elite” política europeia criaram um outro mito: Putin como “um canibal faminto” (direitos autorais de Le Petit Roi). Ele é “a Besta à Porta”, e a Rússia é pintada como sendo anti-Europa e anti-Ocidente, uma ameaça existencial: Putin e a Rússia metamorfoseados em Anticristo.
Bem. Esses anões intelectuais obviamente não sabem que foi o Império Bizantino que sobreviveu ao Império Romano do Ocidente por nada menos que mil anos. Bizâncio resistiu a todos: godos, ávaros, árabes, búlgaros – até não conseguir resistir aos otomanos. Mesmo assim, eles foram capazes de evangelizar os búlgaros e a Rússia Kievana, chegando mesmo a fornecer um modelo de estado aos otomanos.
Se traçarmos uma linha de Danzig a Trieste passando por Viena, podemos verificar que a Europa Ocidental dos tempos medievais foi de fato “protegida” de ataques nômades periódicos (a exceção sendo as planícies húngaras, a parada final de ondas nômades vindas da Ásia).
E isso explica por que a Europa não sabe praticamente nada sobre Rússia, Ásia Central, Eurásia e todo o Heartland, por sinal. A Europa nunca teve que enfrentar um domínio mongol ou otomano. Eles teriam aprendido umas coisinhas – da Pax Mongolica à inclusividade otomana. E talvez a experiência tivesse aplacado seu complexo de superioridade civilizacional, nascido de um esplêndido isolamento.
Eu amo homens de uniforme
Um medonho fio de Ariadne conecta as estarrecedoramente medíocres elites políticas europeias dos dias atuais – aspirantes a miniminotauros perdidos em seu próprio labirinto. O Chanceler alemão da BlackRock vem da zona alemã de ocupação britânica, sendo neto de um nazista. Os nazistas foram exitosamente patrocinados pela Grã-Bretanha para posicionar a Alemanha como sua procuradora em uma perpétua guerra contra a Rússia.
A horrenda Medusa Tóxica de Bruxelas também vem da zona de ocupação britânica: uma família da nobreza com antecedentes nazistas. Seu marido “nobre” é ainda pior, descendendo de criminosos de guerra.
O Petit Roi da France, universalmente desprezado, é um estafeta subalterno do Banque Rothschild, financista de reis e rainhas britânicos desde o século XVIII.
O Intermarium – Polônia, os anões bálticos e a Ucrânia – sempre tiveram governos aparelhados e controlados pela Grã-Bretanha.
Quanto à oposição à guerra contra a Rússia na Romênia, ela foi devidamente derrubada por um golpe.
A conclusão é que os britânicos estão em uma turbinadíssima Totalen Krieg contra a Rússia, com o objetivo de abrir caminho para abocanhar o Grande Prêmio: o controle total da Europa ou dos “continentais”, como eles dizem com desdém. Seus planejadores imperial-feudais com mentalidade do século XVIII miram muito além do que sobrará da Ucrânia, tendo em mente uma Guerra Eterna visando a fragilizar e a controlar por completo uma desnorteada Europa. A única força de oposição são os estados do antigo Império Austro-Húngaro mais a Sérvia: eles se recusam participar dessa Guerra Eterna, que fatalmente destruirá a Europa pela terceira (itálicos meus) vez em pouco mais de um século. Esses países sentem a urgente necessidade de se reunir e formar uma coalizão contrária a uma nova Guerra Balcânica.
O absurdo atualmente propagado pelo front da Guerra Eterna é que as tropas europeias têm que ser enviadas à Ucrânia antes do tão badalado cessar-fogo, e não depois, para que o “Anticristo” Putin seja “mantido sobre pressão” para... bem... capitular quando está ganhado.
Tradução: os europeus não querem uma força de paz. Eles querem uma força de contenção capaz de avançar sempre que julgarem conveniente – como, por exemplo, com uma falsa bandeira provando que os malévolos russos romperam a trégua.
Essa estupidez se reflete no “pensamento” europeu como, por exemplo, a publicação pelo Instituto da União Europeia para Estudos de Segurança (EUISS) de um novo manual estratégico trazendo propostas para o “desempoderamento da Rússia”.
O EUISS posa de especialista na análise da “guerra híbrida” russa. Isso é patético, já que a Guerra Híbrida é um conceito estadunidense. Mesmo assim, a Europa aposta todas as fichas em estabelecer hegemonia sobre cinco latitudes de importância estratégica: China, Ásia–Pacífico, sul do Mediterrâneo, Sudeste Europeu e África Subsaariana. Em resumo: a mesma velha pantomima, a OTAN como um Robocop Global movido a crack.
Apolo versus Dionísio, remixado
Alastair insiste em que Putin, na cúpula de Anchorage, “entendeu a psicologia de Trump”. Trump “parece reconhecer Putin como um igual no panteão dos supostos líderes míticos”. Mais uma vez, a distância entre o apolíneo Putin e o não tão dionisíaco Trump seria equivalente à distância entre o Imperador Mongol Tamerlão e um reles lutador de luta-livre.
Continua aberta a amplas especulações a questão de se Trump, no Alasca, teria combinado com Putin inverter o planejado roubo das reservas internacionais russas pela União Europeia – e, ao contrário, forçar que esses fundos fossem investidos nos Estados Unidos. Bem, aí estaríamos em pleno território “oferta que não dá para recusar”.
Até agora, o que sabemos com certeza é que Steve Witkoff – aquele Bismark dos negócios imobiliários – não entendeu nada do que ouviu diretamente de Putin, montando a cena para o Alasca.
Witkoff correu para as redes dos Estados Unidos para contar que Putin, em 15 de agosto, havia retrocedido quanto a sua linha vermelha suprema, a Ucrânia fora da OTAN. E ao que tudo indica, Trump acompanhou o Bismarck dos negócios imobiliários nessa fake news – uma vez que o próprio Witkoff inventou a história de que os russos haviam “feito concessões quase que imediatamente” no Alasca.
Bem, Witkoff deve ter fumado alguma coisa. Ou não. Porque seu truque de “perdido na tradução”, na verdade, condicionou todo o vergonhoso espetáculo que se seguiu tratando dos mantenedores da paz”.
Agora, portanto, o Narciso Mítico está dizendo que o Império do Caos não irá enviar tropas para a Ucrânia, mas apoiará uma “garantia de segurança”, supostamente usando aviões de espionagem (que, seja como for, já estão em operação), uso de IRS (inteligência, vigilância e reconhecimento), defesa aérea e cobertura aérea. Na prática, o império não oferecerá “garantias de segurança” ao buraco negro ucraniano. Mas o mito de tropas de dezenas de milhares de homens marchando Ucrânia adentro irá persistir.
Na próxima semana, o Fórum Econômico do Oriente, em Vladivostok, trará a tentadora possibilidade de discutir acordos Estados Unidos-Rússia. Como, por exemplo, a ExxonMobil vir a retomar o megaprojeto de gás Sakhalin-1 (já houve conversas secretas com a Rosneft); a venda de equipamentos americanos para projetos de GNL para a Rússia, inclusive o LNG-2 no Ártico, e a compra de quebra-gelos nucleares russos pelos Estados Unidos. Isso será um espetáculo digno de ser visto.
Enquanto isso, Moscou não acalenta qualquer ilusão – como tem que ser. O Narciso Mítico, dependendo de seu humor ao contemplar seu reflexo no lago, pode, a qualquer momento, autorizar ataques de Kiev a Moscou e São Petersburgo com mísseis de longo alcance. Por que não? “Tenho o direito de fazer QUALQUER COISA que eu queira – Sou o Presidente dos Estados Unidos”.
Narciso, na verdade, pensa que é Teseu – matando todos os minotauros que aparecerem pelo caminho, mas incapaz de escapar do Labirinto. Não é de admirar que Moscou tenha que estar pronta 24/7 para algum tipo, qualquer tipo de matança irracional.
Tradução de Patricia Zimbres
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.