O sobrenome da ORCRIM não é Organização Terrorista
'Os riscos políticos concretos de equipar organizações criminosas como organizações terroristas são amplos', escreve a colunista Jacqueline Muniz
No calor do clamor social e do trauma coletivo causado pela recente megaoperação no Rio de Janeiro, a Câmara Federal colocou sob regime de urgência o projeto de lei que pretende classificar organizações criminosas como organizações terroristas. Trata-se de uma categorização político-legal perigosa e profundamente problemática, que exige debate público qualificado e reflexão serena.
Há uma distância substantiva entre uma organização terrorista — que tem os atentados terroristas como a principal ou mesmo a única estratégia política — e o uso de práticas de terror amplamente empregadas por grupos e agentes diversos com finalidades distintas da política. Enquanto o uso do terror por grupos terroristas é uma estratégia de poder político, o emprego do terror por ORCRIMs é uma tática de intimidação para negociar acertos. Ambos carecem de horizonte de ameaça real à soberania. Grupos terroristas questionam a soberania do Estado com suas performances publicitárias, e grupos criminais parasitam e dependem desta mesma soberania.
A organização terrorista tem uma razão política de existência: confrontar o poder governamental, efetuando atentados de alto impacto material, humano e simbólico como dispositivos de marketing capazes de disseminar o temor e o pânico e, com isso, alcançar seus fins políticos. E isso ocorre diante da incapacidade prévia de grupos terroristas de romperem a soberania do Estado.
Já o uso terrorista do terror é uma prática difusa, instrumental e publicitária, voltada para disseminar ameaças, agravar o medo coletivo e, assim, desorientar ações estatais e corroer a confiança pública na capacidade do governo de governar — a segurança pública, por exemplo. Funciona como uma forma de sabotagem e de represália: espasmos de violência extremada, de curta duração e de elevada repercussão, usados para forçar “acordos e negociações” e, com isso, atingir seus fins econômicos por meio do caos social e da desorientação política produzida. Consiste em uma expressão desesperada de busca de visibilidade e do poderio que não se tem, embora se anuncie — incapaz, porém, de disputar ou ameaçar a soberania do Estado.
Quem faz uso terrorista do terror o faz porque não tem condições políticas nem tático-operacionais de fazer uma guerrilha, promover uma guerra ou de sustentar domínio armado por tempo estendido. O terror, como mecanismo de fabricação de ameaças difusas, de pânicos morais e de crises governamentais, é uma tecnologia social antiga e de baixo custo — acessível a qualquer um com disposição, oportunidade e até com poucos meios — que costuma ser utilizada por grupos criminais para disputar territórios, subjugar populações e produzir represálias. Pode também ser executado por cidadãos comuns e por agentes do próprio Estado, de forma isolada, solitária, pontual e sem muito recurso, comando, planejamento ou inteligência. Seu poder reside na facilidade com que pode ser acionado, por amadores ou profissionais, de forma aleatória e até desarticulada, beneficiando-se de seu efeito surpresa para instaurar medo, gerar crises e paralisar respostas institucionais.
Organizações propriamente terroristas não se definem apenas pelo uso terrorista do terror, ainda que o empreguem como principal instrumento de pressão, mas por seu projeto político publicizado nos atentados de alto impacto. Já as práticas de terror têm sido amplamente instrumentalizadas — por governos autoritários, atores estatais e grupos criminosos armados — como linguagem extrema de violência, de visibilidade e de simulação de um poderio que, na prática, não se tem condições de sustentar no tempo e no território, nem de transformar em emancipação política ou governo autônomo.
Confundir organizações terroristas com grupos criminosos armados, agremiações provisórias e indivíduos avulsos que fazem uso de práticas de terror, por exemplo, pode gerar riscos políticos de consequências irreversíveis. E essa possível confusão, sob a forma de lei, exige um olhar atento e uma depuração das definições normativas, legais e procedimentais. Os riscos políticos concretos dessa equiparação são amplos, já conhecidos e devem ser ponderados na elaboração da lei:
1. Criminalização da dissidência e repressão de protestos, permitindo que movimentos sociais e opositores sejam enquadrados como terroristas pela vaguidão e ambiguidade da categoria “terrorismo”.
2. Ampliação das zonas cinzentas jurídicas, com definições genéricas que favorecem arbitrariedades e abusos de poder, como censuras à liberdade de opinião e de expressão.
3. Erosão de garantias processuais e expansão de regimes excepcionais, com silenciamentos, restrição de direitos e procedimentos sumários.
4. Instrumentalização política do termo “terrorismo”, usado como rótulo moral e arma de deslegitimação de adversários políticos.
5. Facilitação de intervenções e ingerências internacionais, que podem “bypassar” a soberania nacional sob o pretexto de combate global ao terrorismo.
6. Baixo ganho repressivo efetivo sobre as organizações criminosas, pois as ORCRIMs, estruturadas em redes econômicas e corruptivas, não ameaçam a soberania do Estado. Na verdade, consorciam-se com ele em circuitos (i) legais para expandir, diversificar, gerar monopólios ou consórcios político-criminais e consolidar seus negócios em uma economia política criminal em rede, com maior ou menor fachada de legalidade.
7. Ocultação das relações de corrupção e cumplicidade entre agentes públicos, mercado e grupos criminosos, deslocando o foco das investigações e das operações policiais para aspectos aparentes e superficiais — como bocas de fumo —, o que permite a manutenção dos arranjos político-criminais ou “esquemas” que sustentam a macroestrutura do crime organizado.
8. Espetacularização militarizada das respostas estatais para fins eleitoreiros, que são onerosas, em termos de imobilização de recursos humanos e materiais vultosos, e de pouco fôlego repressivo, levando ao enfraquecimento da capacidade coercitiva legal e legítima, o que acaba, paradoxalmente, favorecendo as ORCRIMs.
9. Expansão da vigilância clandestina e das práticas heterodoxas de controle social por agentes do Estado.
10. Risco de uso político de informações e tecnologias, que violam o Estado de Direito e o devido processo legal e que podem proteger as cúpulas das organizações criminosas, suas lavanderias e seu enraizamento no interior do Estado e da economia formal.
11. Estímulo a vigilantismos sociais e “caças às bruxas”, reforçando a estigmatização e políticas de exclusão que associam populações vulneráveis a rótulos terroristas.
12. Produção de leis, portarias, regulamentos e protocolos contraditórios ou inexequíveis, que enfraquecem a ação repressiva policial ao abrirem espaço para interpretações oportunistas e particularistas de gabinetes.
13. Estímulo ao conflito de competências entre as polícias, o que compromete qualquer esforço de ação conjunta, integrada e de força-tarefa, em razão de mandatos institucionais vagos ou sobrepostos quanto às atribuições exclusivas, partilhadas e redundantes entre União, Estados e municípios.
Além disso, o conceito de “terrorismo” é problemático em si mesmo. Ele enfrenta limitações em capturar novas formas de emprego do terror, especialmente os chamados “lobos solitários” — agentes isolados, sem estrutura organizacional definida —, o que dificulta sua repressão. Trata-se, ainda, de um conceito de natureza política e moral, multifacetado e sujeito a controvérsias.
Seu uso pode vir a ser oportunista e ideológico, variando conforme conjunturas e interesses partidários ou de governo. Assim, tanto a definição de “terrorismo” quanto a de “organização terrorista” são maleáveis e manipuláveis, servindo a projetos de poder e a narrativas convenientes que exploram suas imprecisões. Daí a importância de um debate substantivo, com a participação da sociedade, para pactuar e delimitar os termos da construção desta proposta de lei.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



