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Francisco Carlos Teixeira Da Silva

Professor Titular de História Moderna e Contemporânea/UFRJ, professor Emérito da ECEME, professor Titular de Teoria Social/UFJF. Prêmio Jabuti, 2014

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O julgamento da História

'O golpismo e o imperialismo se iluminam mutuamente, num avanço inédito de formas fascistizantes de governo', escreve Francisco Carlos Teixeira da Silva

Julgamento no Supremo Tribunal Federal (Foto: Antonio Augusto/STF)

Poucas vezes a História do Tempo Presente, e seus historiadores, foram tão desafiados no seu ofício. Trata-se da análise e do registro “à quente” de um processo que se autoalimenta – tanto o golpismo, dito “continuado”, quanto às medidas de defesa da ordem constitucional – e se desdobraram no nosso quotidiano. Ao golpismo, impenitente, se soma outro fenômeno histórico de raízes históricas tão profundas quanto o golpismo militar na América Latina: a intervenção estrangeira, a invasão da soberania nacional e as ameaças de violências físicas e institucionais de uma grande potência sobre o continente. Os dois fenômenos, golpismo e imperialismo, se iluminam mutuamente, num quadro internacional em que movimentos de extrema-direita se apossaram do poder, num avanço inédito de formas fascistizantes de governo depois de 1945.

Nunca na História da República brasileira assistimos ao golpismo militar e ao chamado “Imperialismo”, mais uma vez aliados, serem levados de forma autônoma e livre ao banco dos réus. Sim, na verdade, o julgamento é duplo: a condenação ao golpismo será, também, a condenação aos seus aliados nacionais e internacionais.

É nesse sentido que se exige um esforço teórico e metodológico da História do Tempo Presente: trata-se de analisar o que no presente possui suas raízes num passado imediato, e mediado, ainda não encerrado como processo histórico, vindo ao menos da Proclamação da República, em 1889, e dos diversos golpes, pronunciamentos ilegais, ataques e tomadas do poder legítimo pelos militares. Tal vício da República, de tão corriqueiro, chegou-se a falar, e acreditar, num “Poder Militar”, ao lado, e por vezes acima, dos (três) Poderes Constitucionais. São esses enlaces, as conexões históricas, entre passado e presente, definindo o futuro, que se transformam na matéria central da História do Tempo Presente. Somente o encerramento, via um ato de violência constitucional e legítima – como diria Walter Benjamin -, imposta pelo Poder Judiciário, poderá encerrar o processo histórico “Militares & República”, abrindo, enfim, uma nova época da História do Brasil.

As origens históricas do sequestro da República pelos Militares têm suas origens na Proclamação da República, quando os militares imbuídos de uma ideologia positivista – de caráter autoritário e modernizante – assumiram a responsabilidade direta da “Res Publica” até a posse do primeiro presidente civil do Brasil, Prudente de Morais, em 1894. Já havíamos, contudo, assistido a renúncias, com Deodoro da Fonseca (1891), atos de intensa violência e de guerra civil com Floriano Peixoto (1891-1894). As lutas subsequentes – as chamadas “Intervenções”, “Pacificações” durante os anos de 1920, a luta contra os movimentos sociais, como em Canudos (1896-1897) ou no Contestado (1912-1916), bem como a preeminência de instituições como o “Clube Militar” sobre a vida pública, na ausência de partidos políticos nacionais, fez de toda a “República Velha” um cenário para a atuação de militares. Em especial dá-se o desenvolvimento de uma doutrina pseudo-histórica na qual os militares, autores da República, teriam recepcionado institucionalmente o chamado “Poder Moderador”, o instrumento da Monarquia pelo qual o Imperador tinha o direito de intervir – como chamar eleições, nomear e despedir governos – na vida pública brasileira. A tese da permanência do Poder Moderador recepcionado pelos Militares, agora sob a forma de um pretenso “Poder Militar”, seria a fonte do permanente golpismo militar no Brasil.

Daí veio a Revolução de 1930, a Guerra Civil em 1932, as revoluções sociais, dos socialistas em 1935 e dos fascistas em 1938, e o Golpe de Estado de 1937, que duraria até 1945. Mesmo o fim do Estado Novo, em 1945, foi um golpe militar, não uma transição política à democracia. Não houve responsabilidades apuradas e punições pela tortura, sequestro e mortes que marcaram a “Polícia Especial” do Estado Novo. O estabelecimento dos campos de concentração e das prisões que marcaram o país nestes anos ficou impune, por vezes vítimas do “apagamento histórico”. Muitos dos principais responsáveis pela violência no Estado Novo – Filinto Müller, Vicente Rao, Francisco Campos – já preparavam o campo para a nova ditadura de 1964, no qual, ao lado dos militares, foram importantes atores. A impunidade de 1945 foi a parteira de 1964. Durante a Quarta República, entre 1946 e 1964, os militares desempenharam um papel central, erguendo-se em juízo autorizador e legitimador das eleições, dos eleitores, dos eleitos, das urnas e dos partidos políticos, trazendo para si um papel que cabia, exclusivamente, ao Superior Tribunal Eleitoral/STF, ou o próprio STF. Assumiram o papel de juízes do Governo Vargas, de 1951-1954, impuseram e depuseram presidentes, em especial entre 1954 e 1955 quando o Brasil teve cinco presidentes em menos de 24 meses, promoveram revoltas contra os resultados legítimos de eleições, incluindo as revoltas de Jacareacanga, em 1956, e de Aragarças, em 1959; definiram a possibilidades, ou não, da continuidade da Presidência Jânio Quadros (em 1961), impuseram um veto ao Vice-Presidente eleito, João Goulart, em 1961, e operaram para a mudança da natureza do regime republicano impondo o Parlamentarismo entre 1961 e 1963.

Agora, depois da participação da FEB na Segunda Guerra Mundial, tudo se fazia na República brasileira conforme a presença, interesses e opiniões da Embaixada dos Estados Unidos, que deveriam definir a oportunidade do presidencialismo brasileiro no plebiscito de 6 de janeiro de 1963, quando 77% da população brasileira disse não à tática das Direitas em limitar os poderes do Presidente da República. Ou avaliar se as “Reformas de Base” eram ou não um “projeto comunista”. O presidencialismo, as Reformas de Base, a alfabetização em massa da população, como proposta por Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire, não agradavam aos interesses de Washington, aliando as classes latifundiárias, o capital estrangeiro, a classe média mobilizada pela mídia e pelas Igrejas e os militares no Golpe de 1 de abril de 1964, que nos levaria para o lado oculto da democracia até 1985. O embaixador dos Estados Unidos tornou-se uma figura tão popular no Brasil, entre 1961 e 1966, que a anedota corrente propunha: “Basta de intermediários, Lincoln Gordon para Presidente!”.

Mesmo a nova “transição” democrática, pós 1964, foi capenga: entre 1980-1985 bombas – logo após o Decreto da Anistia, de 1979 -, sequestros, invasões marcaram a violência – hoje apagada na História – da transição democrática brasileira. E, como em 1945-1946, a transição de 1979-1988 – a mais longa transição da História de qualquer República moderna, não se deram punições, exposições ou afastamento daqueles diretamente envolvidos com as torturas, sequestro e mortes e, claro, com as ofensas inconstitucionais contra a República. A impunidade dos anos de 1920 e 1930 e a ausência de uma transição democrática em 1945 informam e alimentam o golpe de 1964, e a impunidade de 1980- 1985 alimentaram, por sua vez, as expectativas que corroem a Nova República, anunciada por Tancredo Neves em 1985. Nenhum dos poderosos de 1964-1985, nenhum dos autores da violência “bombista” de 1980-1985, incluindo o episodio do RioCentro em 1981 e mais de 40 outros atentados à bomba, com vítimas, contra símbolos da luta pela democratização do Brasil, foram punidos.

Ou seja, a impunidade de 1945, alimenta o golpe de 1964 e a inexistência de Justiça reparadora em 1980-1988, decorrente da autoanistia do regime em 1979, alimentou, e permitiu, a corrosão da República, com o apagamento dos crimes contra a Humanidade e os Direitos Humanos e a revisão da natureza brutal da ditadura de 1964, tornando-se a própria “névoa da História” – do tipo, “- O erro foi matar pouco!” ou “Não houve ditadura!” ou, ainda, o odioso “- Mataram-se mutuamente!” e mesmo o elogio público, no Parlamento, de torturadores, versões de uma História prostituída produzida pelos setores mais reacionários e violentos dos porões e repetido pelo próprio, então, Presidente da República entre 2019 e 2022.

Esses são os enlaces que constroem a estrutura da História do Tempo Presente: 1937, 1945, 1954, 1961, 1964, 1980-1985, 2016 e finalmente 2019-2023. Aí estão os enlaces que fazem da longa História da República no Brasil numa História do Tempo Presente, uma História de feridas abertas.

Em suma, a impunidade é o berço do vício e do eterno retorno da República à tutela militar. Hoje temos a oportunidade inédita de romper com a repetição viciosa da História: dos 37 indivíduos, todos em altos cargos da República, que começam a prestar contas por sua atuação golpista, 25 são militares da ativa e da reserva. Ou seja, são seis (06) generais, a maioria em cargos ministeriais e de alta responsabilidade no próprio Palácio do Planalto; um (01) almirante, então Comandante da Marinha, e, portanto, do poderoso Corpo de Fuzileiros Navais; oito (08) coronéis, com cargos e comandos; seis (06) tenentes-coronéis, incluindo o Ten.-Cel. Mauro Cid; um (01) capitão, o próprio Presidente da República e um (01) Subtenente, além de policiais federais, funcionários da Abin e da PRF. Ou seja, mais de 67% de todo o pessoal conspirador era de origens, função e de cargos militares.

O que desejavam? No imediato, conforme os planos de ação confiscados – “Plano Copa”, “Plano Punhal Verde-Amarelo” – tratava-se de um brutal magnicídio – do Presidente da República eleito, do seu Vice e do, então, Presidente do STF, além da prisão de outros dois ministros do STF. Para a maioria dos democratas já se organizavam os campos de internação/concentração, visando calar toda oposição.

A “doutrina” da Tutela Militar, ameaçava a História do Tempo Presente, pela sistemática impunidade, a reforçar os enlaces e conexões com os anos de 1930 e 1940 e repetir os processos históricos fascistizantes em avanço em todo o mundo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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