O espelho quebrado da esquerda: a crise de identidade entre o poder e a luta
Ao trocar a rebeldia pela institucionalidade, a esquerda se vê num impasse ético entre preservar suas raízes e sustentar a ordem que combateu
A esquerda diante de si mesma - A esquerda mundial, e especialmente a brasileira, atravessa um dos momentos mais ambíguos de sua trajetória histórica. Paradoxalmente, ao conquistar o poder pelo sufrágio democrático, vê-se diante do desafio de abdicar de seus métodos tradicionais de enfrentamento, estruturados na rebeldia, na denúncia e na ruptura. Agora sentada nas poltronas do Estado, ela se vê obrigada a manter o que um dia jurou destruir — o edifício institucional e suas engrenagens burguesas — sob o risco de ver, do outro lado, a direita encenar com precisão os antigos gestos da insurreição. O que se vê, portanto, é uma esquerda em crise: uma crise não apenas política, mas ontológica, de identidade e de propósito.
A esquerda forjada na exclusão: século XX, o século da resistência - A trajetória da esquerda ao longo do século XX foi marcada por uma exclusão sistemática dos centros de poder. De Rosa Luxemburgo a Allende, de Prestes a Mandela, de Guevara a Marighella, o destino da esquerda, quando não foi a prisão ou o exílio, foi a oposição militante. Ela cresceu como força antissistêmica, com raízes profundas nos sindicatos, nos movimentos camponeses, nas universidades e nas igrejas progressistas.
Sob governos conservadores, oligárquicos e por vezes ditatoriais, a esquerda tornou-se um símbolo de resistência. Sua linguagem era radical porque o mundo que combatia era brutal. Sua ética era de urgência, porque sua sobrevivência era precária. As táticas — sejam greves gerais, ocupações, denúncias internacionais, atos de desobediência civil ou mesmo insurreições armadas — estavam ancoradas em um horizonte ético de emancipação e igualdade.
A direita, por sua vez, mantinha-se no poder com o respaldo das elites econômicas, da mídia, das igrejas e, sobretudo, das Forças Armadas e do Judiciário. O uso da violência de Estado, da censura e do autoritarismo legalizado eram meios legítimos para impedir a chegada da esquerda ao governo. Esse histórico alimentou o espírito da militância progressista com a certeza de que toda transformação viria “de fora” — pela ruptura, não pela conformação.
A chegada ao poder e o dilema da governabilidade - A partir do fim do século XX, com o colapso da União Soviética e o avanço das democracias liberais, a esquerda passou a acessar o poder por via eleitoral: foi o caso do PT no Brasil, do chavismo na Venezuela, do kirchnerismo na Argentina, da Frente Ampla no Uruguai, da ascensão de partidos como o Syriza na Grécia ou o Podemos na Espanha.
Essa nova esquerda institucionalizada teve que negociar com os alicerces do sistema que antes combatera. A "governabilidade" tornou-se um mantra. Os sindicatos tornaram-se ministérios. A rebeldia virou discurso. A esquerda revolucionária, agora institucional, descobriu que o Estado moderno é um Leviatã que devora seus filhos — e que o poder exige manutenção, moderação, conciliação.
No Brasil, a chegada de Lula ao poder em 2003 foi simbólica: um operário metalúrgico, forjado nas greves do ABC, assumia a presidência da República. O PT, nascido da luta popular, assumia as rédeas do Estado. No entanto, para manter-se no poder, foi necessário compor com o chamado "centrão", acomodar os interesses do agronegócio, das grandes empreiteiras, das corporações da mídia. A esquerda passou, então, a ser cobrada por sua base histórica por aquilo que era obrigada a negociar nos bastidores.
A direita que agora grita - O cenário atual apresenta uma inversão que beira o surrealismo histórico: a direita — outrora bastião da ordem, da lei, da moral e dos bons costumes — atua com a insurgência que caracterizava a esquerda de antanho. No Brasil, bolsonaristas tomam as ruas, atacam instituições, deslegitimam eleições, organizam motociatas, disseminam fake news e reivindicam a desobediência civil — tudo isso em nome de uma suposta liberdade ameaçada.
Nos Estados Unidos, a invasão do Capitólio em 2021 mostra como a direita não mais se contenta com as vias tradicionais do poder. Na Europa, a extrema-direita de Orbán (Hungria), Le Pen (França) e Giorgia Meloni (Itália) instrumentaliza discursos antissistema para conquistar corações e votos. Essa nova direita se traveste de oprimida, denuncia elites (ironicamente sendo elas mesmas a elite) e usa os meios digitais com a virulência que a esquerda usava nos panfletos e rádios clandestinas.
Nesse novo teatro, a esquerda vê-se obrigada a ser o guardião da legalidade, da ordem democrática, das instituições republicanas. Cabe a ela, agora, defender o Supremo Tribunal Federal, as urnas eletrônicas, os limites da liberdade de expressão. Tarefa inglória para um movimento nascido para transgredir, não para manter.
O espectro do legalismo e a esfinge do radicalismo - É neste ponto que a crise se instala de forma mais aguda: como pode a esquerda ser revolucionária a partir do poder, sem se deslegitimar perante sua própria história? Como pode um governo de esquerda — como o de Lula — enfrentar o fascismo crescente sem incorrer no mesmo autoritarismo que outrora combateu? Como proteger o Estado democrático de direito sem tornar-se um novo Leviatã?
O dilema é real e delicado. Se a esquerda apela a instrumentos de exceção — como censura de conteúdo, repressão policial, judicialização da política —, corre o risco de alimentar a narrativa bolsonarista de perseguição e vitimização. Mas, se nada faz, deixa-se corroer por dentro pelo discurso de ódio, pela manipulação digital e pela violência simbólica que já se converte, em muitos casos, em violência real.
Entre Gramsci e Camus: o desafio ético da esquerda no século XXI - Antonio Gramsci ensinava que a hegemonia não se conquista apenas por meio do poder do Estado, mas pela disputa cultural, pelo consenso social. Hoje, talvez mais do que nunca, a esquerda precisa reconquistar essa hegemonia no campo simbólico — sem abrir mão de seus princípios fundantes.
Albert Camus, por sua vez, alertava contra a tentação do totalitarismo nas revoluções. Para ele, a verdadeira rebelião é aquela que afirma a dignidade humana mesmo quando confronta a injustiça — e não a que justifica qualquer meio em nome do fim. É nessa ética do limite, da contradição e da responsabilidade que a esquerda deverá se reinventar.
A esquerda como promessa inacabada - A esquerda não pode ser apenas a nostalgia de uma luta passada, nem o verniz progressista de um governo conciliador. Também não pode imitar a direita insurgente com suas próprias armas — porque perderia sua alma no processo. Seu desafio é mais profundo: reencantar a política com um horizonte de sentido, reatar o elo entre indignação e projeto coletivo, entre resistência e construção institucional.
Ser de esquerda, hoje, é ter coragem de admitir a perplexidade e seguir adiante mesmo assim. É fazer do poder um espaço de transformação — e não de adestramento. É exercer a radicalidade não pela quebra, mas pela reinvenção do comum. É, em suma, encarar o espelho da história, agora estilhaçado, e tentar, com os cacos, moldar uma nova forma de existir no mundo.
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