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      João Lister

      Advogado, graduado pelo UNIUBE – Universidade de Uberaba, Pós Graduado MBA, em Direito Empresarial pela FGV e psicanalista

      14 artigos

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      A Indústria da Crise: Letargia cívica e o bombardeio contínuo da atenção

      Libertar a política da lógica do entretenimento e da imagem é tarefa urgente

      Manifestação “Protejam os Migrantes, Protejam o Planeta”, na cidade de Nova York, EUA, 19 de abril de 2025. (Foto: REUTERS/Caitlin Ochs)
      “Se tudo é urgência, nada é prioridade. Se tudo é crise, nada é enfrentado.” – o autor

      Vivemos sob o império da crise. Não uma crise específica, mas a proliferação contínua de múltiplas crises que se sobrepõem, se sucedem, se anulam e se alimentam. Esse fenômeno, que Giorgio Agamben denominaria como o estado de exceção permanente, não é acidente, mas engrenagem de um sistema — uma verdadeira indústria da crise, que paralisa o sujeito histórico e desarticula a ação política transformadora.

      No início do século XXI, com os atentados de 11 de setembro de 2001, o mundo ingressou em um novo paradigma de governança por meio do medo e da emergência. Desde então, a política passou a ser administrada sob o signo da ameaça: terrorismo, colapso financeiro, pandemias, guerras cibernéticas, crises migratórias, colapsos climáticos, novas pandemias, golpes constitucionais, fake news, IA descontrolada. Em 2025, vivemos mais um ciclo dessa repetição — Israel intensifica sua ofensiva militar em Gaza após ataques coordenados do Hezbollah; a Ucrânia entra em seu quarto ano de guerra, agora sob crescente desgaste da atenção midiática global; no Brasil, uma crise hídrica ameaça o Sudeste enquanto o Congresso discute uma anistia ampla para crimes de fake news eleitorais e sua soberania é ameaçada por Donald Trump. Tudo ao mesmo tempo.

      A fragmentação é tão estratégica quanto o choque.

      A lógica do acúmulo: de Petrogrado a bolsonarismos

      A Revolução Russa, deflagrada em fevereiro e aprofundada em outubro de 1917, foi um símbolo da ruptura, um ponto de inflexão na história moderna. Não se tratava apenas da derrubada de um regime imperial, mas da canalização da indignação popular contra uma estrutura opressora visível. A miséria era concreta, os privilégios da aristocracia explícitos, a concentração do poder e da riqueza indecentes. A multidão sabia o que atacar.

      Em contraste, os levantes contemporâneos se dissolvem em um mar de indignações difusas. Em 2013, as Jornadas de Junho no Brasil começaram como protestos contra o aumento das tarifas de transporte, mas logo se pulverizaram em dezenas de pautas: corrupção, saúde, educação, e até mesmo “contra tudo isso que está aí”. A falta de um inimigo definido é deliberada — como diria Naomi Klein em A Doutrina do Choque, o sistema neoliberal moderno sobrevive criando confusão, utilizando a comoção para avançar agendas impopulares. 

      No Brasil contemporâneo, a ascensão do bolsonarismo é produto direto dessa estratégia. Um populismo reacionário que se alimenta de crises: moral, institucional, sanitária, educacional, cultural. Jair Bolsonaro não foi eleito apesar da crise, mas por causa dela. Ele encarnou o ressentimento difuso, sem precisar oferecer soluções. Cada escândalo ou declaração absurda gerava uma nova cortina de fumaça que enterrava o anterior — uma overdose informacional, onde a indignação não encontra objeto nem direção.

      A paralisia pela multiplicidade

      A era digital amplia esse fenômeno a uma escala inédita. Com a explosão das redes sociais, a atenção se tornou o recurso mais escasso. Como apontou Byung-Chul Han, no livro Sociedade do Cansaço, vivemos em um tempo de hiperestimulação, onde o excesso de informação leva à exaustão e à incapacidade de ação. Em 2025, as plataformas seguem lucrando com o caos: cada guerra, escândalo, denúncia, massacre ou catástrofe viraliza, mas apenas por 24 horas. No dia seguinte, um novo acontecimento ocupa o topo do feed.

      O bombardeio informacional contínuo não apenas anula a memória como impede a solidariedade efetiva. As dores são descartáveis. A guerra em Gaza, com mais de 35 mil mortos em dois anos, já não gera comoção suficiente; a fome no Sudão, com crianças morrendo aos milhares, sequer entra na pauta dos noticiários; os desastres ambientais que devastam o Pantanal ou a Amazônia são tratados como “problemas regionais”. A urgência universalizou-se, mas a mobilização morreu.

      Do sujeito histórico ao avatar indignado

      Hannah Arendt já alertava que o totalitarismo moderno cresce quando os cidadãos deixam de se sentir parte ativa do processo político. A apatia contemporânea, no entanto, não é ausência de emoção, mas excesso dela — um estado de excitação impotente, onde o sujeito acredita participar do mundo através de “posts”, “stories”, curtidas e hashtags. A militância virou performance. O engajamento é medido em métricas vazias.

      Zygmunt Bauman chamaria isso de “compromisso líquido”: protestos que evaporam tão rapidamente quanto surgem. E o sistema aprende com isso. A coisificação da rebelião é tão avançada que já se vende camiseta “revolucionária” pela Shein, enquanto algoritmos de IA fabricam discursos que imitam lutas identitárias para gerar engajamento.

      A indústria da crise e seus operadores

      Esse estado permanente de urgência interessa a muitos: governos autoritários justificam censuras; corporações se esquivam de responsabilizações ambientais e sociais; a imprensa hegemônica capitaliza o medo com manchetes alarmistas. Em 2025, o próprio conceito de “normalidade” se torna irrelevante — quem governa são as exceções.

      Pior: a indústria da crise não quer solução, mas continuidade. Ela prospera com a sensação de colapso iminente. Quanto mais se teme o futuro, mais se aceita o presente — mesmo que ele seja inaceitável. É uma pedagogia do desespero: desarticula-se a esperança para impedir a organização coletiva.

      Saídas possíveis: contra a distração, o foco histórico

      Libertar a política da lógica do entretenimento e da imagem é tarefa urgente. Isso exige não apenas crítica, mas construção. Como propõe o filósofo francês Alain Badiou, o verdadeiro ato político é aquele que rompe com o possível — não é repetição de gestos vazios, mas criação de novas formas de relação e de verdade.

      Precisamos recuperar a memória histórica como arma contra o esquecimento estratégico. Retomar o sentido de pertencimento, de construção coletiva. A esquerda, tão fragmentada quanto a própria sociedade que denuncia, precisa aprender a construir convergência sem apagar diferenças. A crítica deve voltar a ser projeto.

      Afinal, se tudo é crise, o que permanece é o sistema que a produz.

      A indústria da crise e dos conflitos não apenas desinforma — ela desmobiliza. Seu produto não é apenas o medo, mas a letargia cívica, a crença de que nada pode ser feito, de que todas as lutas são vãs. Contra esse niilismo político, é preciso resgatar o sujeito histórico, a consciência de classe, a solidariedade concreta.

      Ou retomamos o poder de narrar o mundo, ou continuaremos meros espectadores do espetáculo do colapso.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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