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José Luís Fiori

Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de Sobre a Guerra (Vozes, 2018)

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O dia em que o brilho da China eclipsou o ocidente

A China e seus grandes aliados estão dispostos a reorganizar e sustentar uma nova ordem mundial pacífica e igualitária, que respeite as várias civilizações

O presidente chinês Xi Jinping discursa na reunião SCO Plus em Tianjin, no norte da China, em 1º de setembro de 2025 (Foto: Xinhua)

Nos oito primeiros meses de 2025, Donald Trump ocupou a primeira página dos principais jornais do mundo, praticamente todos os dias e semanas, com seu hiperativismo midiático e todo o tipo de decisões e iniciativas surpreendentes, unilaterais e arbitrárias na maioria dos casos. Muitas delas, inclusive, não foram implementadas ou nunca existiram. E outras tantas criaram enorme barulho, mas depois ficaram pelo meio do caminho. É o caso de seu anúncio da anexação do Canadá e da Groenlândia ao território dos EUA, ou suas bravatas pacifistas com relação às guerras da Ucrânia e de Gaza. E ainda, sua recente decisão de marcar data e convocar os presidentes da Rússia e da Ucrânia para uma reunião promovida por ele, mas que foi rejeitada pelo presidente ucraniano e solenemente ignorada pelo presidente Vladimir Putin…

No entanto, o que aconteceu na China entre os dias 31 de agosto e 3 de setembro de 2025 foi algo completamente diferente, não passou pela vontade ou decisão dos EUA e deixou Donald Trump inteiramente marginalizado, paralisado e sem capacidade de resposta frente ao gigantesco espetáculo promovido pelos chineses. Durante esses quatro dias, o mundo teve a certeza de que algo novo acabara de acontecer, sacramentando o declínio de uma “era eurocêntrica” e de uma ordem mundial “unipolar”, junto com o nascimento de um novo polo de poder mundial, com capacidade suficiente e projeto próprio de reorganização do mundo e das relações entre suas várias civilizações.

A 24ª. Cúpula da Organização de Cooperação de Xangai, realizada na cidade de Tianjin nos dias 31 de agosto e 1º de setembro, e o grandioso desfile militar realizado em Pequim no dia 3 de setembro, em comemoração aos 80 Anos da Vitória da China contra o Japão, e contra o fascismo na II Guerra Mundial, foram antes que nada dois espetáculos programados e coreografados nos mais mínimos detalhes – como na tradição milenar dos grandes rituais chineses, com seus símbolos e significados que refletem a visão de seu povo a respeito da ordem social e cósmica, e que contêm mensagens que são praticamente inacessíveis para quem não possui a chave para decifrá-las.

Assim, do ponto de vista da crise contemporânea da ordem internacional e do caos geopolítico instalado pelo declínio da Europa, da desconstrução da hegemonia americana e do mandonismo arbitrário de Donald Trump, esses dois eventos emitiram alguns sinais muito claros, através de gestos e palavras, mas também através do silêncio imponente das novas armas produzidas e apresentadas ao mundo no desfile da Praça da Paz Celestial.

Em primeiro lugar, destacam-se a duração da visita e o calor da recepção dada por Xi Jinping ao presidente russo, Vladimir Putin, deixando claro que sua amizade é indestrutível e que a aliança estratégica entre Rússia e China não foi, nem será abalada pela reaproximação entre a Rússia e os EUA de Donald Trump. Putin e Xi defenderam as mesmas posições na Cúpula da OCX e estiveram lado a lado no desfile militar, além de terem mantido várias conversas privadas e amistosas durante os cinco dias da visita do presidente russo à China. Em seguida, cabe destacar a entrada na conferência, de mãos dadas, de Vladimir Putin e do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, até se encontrarem com o primeiro-ministro chinês, com quem se deram as mãos, formando um círculo inimaginável alguns anos ou meses atrás – três dos maiores e mais populosos países do mundo unificados pelo ataque econômico desastroso de Donald Trump contra a economia indiana. Por fim, como não ver a importância da chegada ao desfile militar do dia 3 de setembro, lado a lado, de Xi Jinping, Vladimir Putin e Kim-Jong-Un, representando os três países que lutaram juntos contra os EUA na Guerra da Coreia entre 1950 e 1953, logo depois do fim da II Guerra Mundial. Passaram uma imagem e decisão de retorno e releitura de uma história que eles consideram ter sido interrompida ou distorcida pala narrativa das potências ocidentais lideradas pelos EUA.

Na abertura da Cúpula da OCX, e frente aos seus convidados da Praça Celestial, o primeiro-ministro Xi Jinping fez dois pronunciamentos que deverão passar para a História, propondo a criação de uma nova ordem mundial baseada na igualdade, na consulta mútua, no respeito pela diversidade das civilizações e na busca do desenvolvimento econômico e na luta conjunta por um futuro compartilhado. Criticou veementemente todo tipo de “hegemonismo” e “política de força”, numa referência velada ao “supremacismo europeu” e à linguagem utilizada constantemente por Donald Trump e seu grupo de governo. Xi Jinping foi mais além e propôs diretamente a “iniciativa de uma nova governança mundial”, baseada em cinco princípios fundamentais: i) o respeito pela soberania de todos os Estados, independentemente de sua força; ii) o respeito ao direito internacional; iii) a prática igualitária de um multilateralismo renovado; iv) a criação de uma ordem voltada para a proteção e desenvolvimento das pessoas, na sua condição universal de seres humanos, e não apenas de indivíduos; e por fim, v) a adoção de medidas concretas e imediatas, com o objetivo último de obter a paz entre os povos baseada no desenvolvimento conjunto e cooperativo de todos, sem nenhum tipo de dominação e colonialismo.

A Cúpula da OCX reuniu cerca de 20 chefes de Estados-membros do maior bloco regional do mundo – entre os quais Turquia, Egito, Irã e outros –, com cerca de 42% da população mundial e 24% da área territorial global. E o desfile militar, por sua vez, apresentou ao mundo as novas armas chinesas, que podem projetar seu poder ao redor do globo em caso de guerra, incluindo o míssil nuclear Dogfeng 5, capaz de atingir seus alvos a 20 mil quilômetros de distância – ou seja, qualquer ponto da Eurásia ou do “hemisfério ocidental” – ao lado de seus novos drones submarinos de grande porte e mísseis antinavio, capazes de desbloquear em conjunto o cerco marítimo do Sul do Pacífico, sustentado pelas forças navais de EUA e Grã-Bretanha junto com Austrália, Japão e Coreia do Sul.

Antes de iniciar-se o desfile desses armamentos e de mais alguns milhares de soldados, do alto do prédio da entrada da Cidade Proibida – no mesmo lugar em que Mao Tse Tung anunciou ao mundo, em 1949, a fundação da República Popular da China –, Xi Jinping também anunciou ao mundo que a China se colocava naquele momento ao lado da paz e da civilização, e se propunha a liderar, junto com os demais povos do Oriente e do Ocidente, uma nova ordem global. Na verdade, a China de Xi Jinping propõe que seja feita uma releitura do papel chinês na II Guerra Mundial e na derrota do fascismo, papel que foi literalmente negado ou cancelado depois da exclusão da China de Mao Tse Tung do Conselho de Segurança da ONU, em 1949 – exclusão que foi feita de forma absolutamente arbitrária e autoritária pelas chamadas “potências ocidentais”. E agora, ao lado desta releitura, Xi Jinping está reivindicando liderar a reorganização do próprio sistema das Nações Unidas, sem destruí-lo – pelo contrário, com a participação igualitária e proporcional de todos os povos, e com o fim definitivo da pretensão hegemônica das antigas potências europeias e dos Estados Unidos.

Ou seja, se fosse necessário identificar a mensagem principal desses três dias em que a China iluminou o mundo, é que ela e seus grandes aliados estão dispostos a reorganizar e sustentar uma nova ordem mundial pacífica e igualitária, que respeite as várias civilizações que coexistem na face da Terra. Uma ordem ancorada na estabilidade, na credibilidade dos valores, instituições e práticas historicamente comprovadas do pacifismo e da estabilidade chinesas. Por isso talvez a China tenha decidido fazer sua grande demonstração de força militar exatamente na majestosa Praça da Paz Celestial.

Artigo originalmente publicano no GGN

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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