O cerco invisível: como os EUA estão reocupando a América Latina
Bases, cabos e portos: a nova arquitetura de dominação que transforma a América Latina no eixo vital da sobrevivência do império americano
Os Estados Unidos estão reconstruindo silenciosamente sua arquitetura imperial no hemisfério sul. Do lítio aos cabos submarinos, dos portos ao ciberespaço, o continente volta a ser o território-ponte da sobrevivência americana diante do declínio do dólar, da ascensão da China e da revolução soberanista do Sul Global. A América Latina é o novo front: não mais de guerras convencionais, mas de infraestrutura, dados e narrativas.
A sobrevivência do império
O império norte-americano chegou ao século XXI cercado por suas próprias ruínas. Nenhuma potência sobrevive impunemente à erosão de seu mito. O que outrora foi um projeto global de expansão e dominação pela força — consolidado no pós-guerra com o dólar, o petróleo e o medo — hoje se transforma em uma estrutura defensiva, obcecada por preservar o que resta do seu poder. A nova face do imperialismo é o cerco: não mais invasões, mas arquitetura. Não mais exércitos, mas infraestruturas.
Desde 2020, e com velocidade exponencial após a pandemia e a guerra na Ucrânia, os Estados Unidos vêm redesenhando o mapa de sua presença global. A Europa tornou-se cara demais, a Ásia perigosa demais e o Oriente Médio previsível demais. Restava o quintal histórico: a América Latina. Um território vasto, rico, instável, dotado de todos os recursos de que um império em declínio precisa para se manter respirando — energia, minerais, alimentos, cabos de dados e governos vulneráveis.
No século passado, o império sustentava-se com petróleo barato e guerras longas; neste, sustenta-se com dados, minerais críticos e controle das rotas de informação. A estratégia é simples e brutal: transformar a América Latina no novo Oriente Médio do século XXI, um território funcional à sobrevivência dos EUA, capaz de prover energia, estabilidade logística e domínio informacional em escala continental. Se antes Washington precisava de bases para tanques, agora precisa de portos, cabos e data centers para algoritmos.
O motor dessa transformação é silencioso, mas constante. O Comando Sul (SOUTHCOM) coordena uma rede de infraestruturas que se estende das Antilhas às Guianas, passando por Honduras, El Salvador e Colômbia. Sob o discurso de combate ao narcotráfico, desastres naturais e ajuda humanitária, ergue-se um sistema de presença permanente e vigilância total. No mesmo eixo, o Departamento de Estado e a DFC (U.S. International Development Finance Corporation) injetam bilhões de dólares em “financiamentos estratégicos” para minerais críticos e infraestrutura digital, sempre com o mesmo destino: enfraquecer a presença chinesa, neutralizar os BRICS e impedir o avanço de qualquer soberania real.
Os Estados Unidos não colonizam mais territórios; colonizam dependências. A América Latina tornou-se, mais uma vez, o espaço-laboratório onde o império testa suas novas formas de controle: bases rotativas, portos privatizados, plataformas digitais, acordos de cooperação cibernética e redes de vigilância sob a bandeira da segurança hemisférica. Tudo isso para garantir que nenhuma potência emergente — nem a China, nem a Rússia, nem mesmo o Brasil — consiga transformar o Sul Global em um polo autônomo de poder.
O que está em jogo é a sobrevivência do império e a contenção do futuro. Washington sabe que, se perder o domínio sobre a América Latina, perde o último pilar que sustenta o dólar, o poder militar e a ilusão de universalidade de seu modelo. Por isso, a guerra deixou de ser um evento para se tornar uma condição permanente — uma guerra invisível, travada na malha de cabos, satélites, leis e narrativas.
O império americano luta, enfim, contra o tempo. E é justamente nesse esforço desesperado de contenção — essa tentativa de congelar a história — que reside sua fraqueza. Porque, quanto mais o império tenta conter o mundo, mais o mundo escapa por entre seus dedos.
A arquitetura do cerco
A nova dominação imperial não se impõe mais por tanques nem por marines: ela se constrói em camadas de infraestrutura. Cada base, porto, cabo submarino e acordo de “cooperação cibernética” é uma célula de uma arquitetura global invisível. O império redesenha seu poder não pelo controle direto dos governos, mas pelo controle indireto das infraestruturas que sustentam a vida moderna — energia, dados, logística e narrativa. A América Latina tornou-se o epicentro dessa transição.
Sob o comando do SOUTHCOM, os Estados Unidos mantêm hoje uma malha de postos de presença militar “flexíveis” — as chamadas Cooperative Security Locations — em Aruba, Curaçao, El Salvador e Honduras. Oficiais descrevem essas instalações como “bases sem bandeira”: não ostentam tropas fixas, mas permitem mobilidade permanente. De lá partem missões de vigilância marítima, espionagem eletrônica, transporte de tropas e treinamento de forças locais. Não há custo político: são bases invisíveis, operadas sob o manto da cooperação técnica.
Paralelamente, o império constrói sua infraestrutura digital de poder. Gigantes norte-americanas — Google, Meta, Amazon, Microsoft — estendem cabos submarinos que ligam o continente ao Atlântico Norte e ao Pacífico, transformando o Brasil e o Chile em nós centrais de conectividade global. Cada cabo, cada data center e cada contrato de nuvem carrega a promessa de progresso, mas também a armadilha do controle: a soberania informacional dos países é terceirizada para corporações com sede em Washington. O poder militar e o poder de dados convergem, fundindo o Pentágono e o Vale do Silício em um complexo militar-digital sem precedentes.
A terceira camada é econômica. A DFC (U.S. International Development Finance Corporation) e o programa Minerals Security Partnership (MSP) operam como os braços financeiros dessa engenharia. Sob o discurso de desenvolvimento sustentável, eles canalizam investimentos para mineração, energia e infraestrutura “segura” — leia-se: sem presença chinesa ou russa. Na prática, compram influência e fixam as cadeias produtivas em órbitas de dependência. A disputa pelo lítio, pelo cobre e pelo nióbio é travada com planilhas, não com bombas.
Sobre essas três camadas — militar, digital e financeira — ergue-se a quarta: a guerra informacional. O império constrói narrativas de medo e instabilidade para justificar sua presença. O combate ao narcotráfico, a luta contra a desinformação e a defesa da democracia são rótulos que mascaram o verdadeiro objetivo: preservar o controle sobre a região e impedir a consolidação de polos autônomos. Cada programa de “cooperação digital” e cada treinamento de “segurança cibernética” é uma operação psicológica travestida de parceria.
O resultado é um cerco silencioso. De Soto Cano a Chancay, de Comalapa a Santos, de Lajas a Valparaíso, a América Latina é hoje atravessada por uma teia de poder tão densa quanto discreta. O império aprendeu a ocupar sem invadir, a controlar sem declarar, a dominar sem aparecer. A nova guerra não se anuncia — ela se instala.
Bases, portos e cabos: a nova cartografia da dominação
A geografia da dominação mudou. Os impérios antigos erguiam muralhas e fortificações. O império contemporâneo ergue bases rotativas, portos privatizados e cabos submarinos. Não há bandeiras tremulando, apenas logotipos corporativos, tratados de cooperação e contratos de “segurança hemisférica”. A América Latina foi reconfigurada como um tabuleiro de circuitos: linhas de fibra óptica substituem trincheiras, zonas portuárias se tornam quartéis logísticos e acordos comerciais viram tratados de sujeição tecnológica.
No norte da região, o FOS de Soto Cano, em Honduras, funciona como a espinha dorsal do poder aéreo dos EUA na América Central. Ali, helicópteros, cargueiros e equipes de operações especiais são lançados em missões que cobrem da fronteira mexicana ao Caribe. O CSL de Comalapa, em El Salvador, abriga aeronaves de vigilância e reconhecimento que monitoram o corredor do Pacífico. Em Aruba e Curaçao, as bases compartilhadas operam como sentinelas do Caribe, rastreando embarcações e comunicações eletrônicas sob a justificativa de combater o narcotráfico. É o mesmo modelo de controle total, travestido de parceria.
Esses pontos não existem isolados; compõem uma malha estratégica de mobilidade e observação. Os portos e aeroportos civis são adaptados para receber contingentes, drones e sensores. O que parece infraestrutura civil é, em essência, infraestrutura dual, pronta para uso militar em tempo real. Essa flexibilidade é o segredo da nova dominação: ocupar sem ocupar, dissuadir sem declarar guerra.
No plano marítimo, o império avança sobre os nós logísticos do continente. O Canal do Panamá foi reintegrado à esfera direta de influência norte-americana após a reversão da adesão panamenha à Iniciativa do Cinturão e Rota. O porto de Chancay, no Peru, construído pela China, virou alvo de espionagem, de pressões diplomáticas e de campanhas de desinformação. Portos brasileiros e chilenos — Santos, Itaguaí, Valparaíso — são disputados por fundos e construtoras que orbitam Washington e Wall Street. Cada terminal, cada contrato de dragagem, cada consórcio de contêineres carrega mais peso geopolítico do que um batalhão de fuzileiros.
No subsolo e no fundo do mar corre o sistema nervoso da dominação: os cabos de dados. Google, Meta e Amazon controlam a maioria das linhas de fibra óptica que ligam a América do Sul à internet global. Firmina, Monet, Curie, Humboldt — nomes técnicos para rotas de poder. Esses cabos definem o tempo e o espaço do hemisfério: quem controla a latência controla o comércio, a informação e, portanto, a narrativa. O império compreendeu que soberania digital é soberania política e age para impedir que qualquer país do Sul Global desenvolva cabos ou nuvens independentes. É por isso que o projeto do Cabo BRICS foi silenciosamente sabotado — porque significava liberdade.
Assim, o continente foi transformado em uma imensa infraestrutura de contenção. O mapa da América Latina revela, sob a superfície, uma arquitetura de vigilância e extração integrada: bases militares conectadas a portos de exportação, portos ligados a corredores minerais e cabos interligando tudo a centros de dados controlados pelo Norte. É um sistema de domínio que não precisa ocupar territórios físicos, apenas capturar os fluxos vitais — energia, informação e mobilidade.
O cerco, portanto, é topológico: invisível, modular e permanente. A América Latina é hoje o espelho invertido do Oriente Médio — sem tanques nas ruas, mas com sensores nas nuvens; sem ocupações declaradas, mas com ocupações de infraestrutura. O império não quer mais bandeiras: quer funções, quer enlaces, quer dados. É a dominação perfeita — aquela que não se vê, mas que estrutura tudo o que existe.
Minerais críticos e o saque do século XXI
Sob a superfície da retórica verde e da transição energética, desenrola-se a nova corrida imperial. O planeta tenta substituir o petróleo, mas o império apenas muda de matéria-prima. Agora, o ouro negro é branco — o lítio. Junto dele, cobre, nióbio, terras raras e grafite formam o núcleo da economia da era digital. Quem controlar esses elementos controlará os circuitos do futuro — e os Estados Unidos sabem disso. Por isso, a América Latina volta a ser a mina da história: o lugar onde a energia se transforma em poder e a soberania em mercadoria.
Nos últimos anos, Washington construiu uma teia financeira e diplomática para capturar o coração mineral do continente. A DFC (Development Finance Corporation) e o Minerals Security Partnership (MSP) são seus instrumentos centrais. Sob a bandeira da “cooperação sustentável”, essas instituições compram posições em projetos estratégicos, oferecem créditos condicionados e impõem “padrões ambientais” que, na prática, funcionam como barreiras geopolíticas à China e à Rússia. O discurso é técnico; o objetivo, geoestratégico. O que se apresenta como proteção ambiental é, na essência, proteção do monopólio americano sobre as cadeias críticas da nova economia.
A Argentina tornou-se o primeiro grande laboratório dessa política. O governo de Javier Milei, em aliança aberta com Washington, abriu o triângulo do lítio às mineradoras ocidentais. Empresas americanas e canadenses avançam sobre salares enquanto a DFC prepara linhas de crédito de “desenvolvimento energético” que amarram o país à infraestrutura de exportação e ao dólar. O lítio argentino não financiará a industrialização nacional — servirá de combustível para as fábricas de baterias da Califórnia e do Texas.
No Chile, onde o Estado tenta preservar parte do controle sobre o recurso, a pressão é mais sutil: acordos de “transparência”, parcerias público-privadas e fundos multilaterais travestidos de investimentos verdes. A disputa é pela autonomia regulatória. Na Bolívia, o método é outro: sabotagem institucional e guerra judicial. Cada atraso em contratos com consórcios chineses ou russos é uma vitória indireta do império, que não precisa mais intervir — basta criar incerteza.
O Brasil é o grande prêmio. Com o nióbio, o grafite e o potencial de terras raras, o país concentra matérias-primas que definem o século XXI. É por isso que Washington tenta, por todos os meios, capturar a política mineral e energética brasileira: do pré-sal às energias limpas, tudo é tratado como ativo geopolítico. A DFC e think tanks ligados ao Departamento de Estado oferecem parcerias, relatórios e roadmaps de integração verde. O que está em disputa não é a extração, mas o valor agregado: se os minerais serão industrializados aqui ou exportados brutos para sustentar a indústria americana.
Enquanto isso, os mesmos atores que financiaram guerras por petróleo agora financiam startups de mineração verde. A retórica da sustentabilidade esconde a mesma lógica de saque, apenas com roupagem ESG. O império aprendeu a usar a linguagem da consciência ecológica como arma de poder: salvar o planeta, desde que continue sendo o planeta sob seu controle.
A corrida pelos minerais críticos é, portanto, o front subterrâneo da nova dominação. Cada contrato de mineração é um tratado de dependência. Cada acordo de “cooperação tecnológica” é uma linha de código escrita na arquitetura da subordinação. A América Latina, que poderia ser o berço da transição energética soberana, arrisca-se a repetir o destino do Oriente Médio: exportar o futuro e importar o passado.
Guerra informacional, ciber e narrativa
Se a dominação contemporânea tem uma face visível nas bases e nos portos, sua verdadeira essência se esconde no invisível: a guerra pela mente e pelo sentido. Nenhum império sobrevive apenas pelo controle da matéria; ele precisa controlar também a percepção. E é nesse campo — o informacional — que os Estados Unidos erguem sua fortaleza mais sofisticada. A guerra deixou de ser travada em trincheiras e passou a ser disputada nas telas, nos algoritmos e nas leis que definem o que pode ou não ser dito.
Após o colapso do soft power clássico — baseado em Hollywood, na mídia corporativa e na ilusão da democracia liberal — o império reinventou sua linguagem. A partir de 2016, com a ascensão da guerra híbrida global, Washington converteu a retórica da liberdade em instrumento de vigilância. A defesa da democracia passou a justificar censura, sanções, espionagem e intervenção digital. A antiga diplomacia cedeu espaço à engenharia de percepção. A fronteira entre comunicação, segurança e guerra simplesmente desapareceu.
O SOUTHCOM coordena hoje uma complexa rede de MISO (Military Information Support Operations) — operações de influência e guerra psicológica — voltada para o continente latino-americano. A estrutura é discreta: empresas privadas de análise de dados, ONGs de “verificação de fatos”, fundações e laboratórios acadêmicos financiados pelo Departamento de Estado. O objetivo é moldar a esfera pública regional, desacreditar governos soberanistas e legitimar a presença americana como “necessária” ao combate à desinformação. É o colonialismo 4.0: conquistar corações e mentes com hashtags.
Depois do encerramento do Global Engagement Center, a coordenação dessas ações migrou para o Pentágono, o USCYBERCOM e o SOCOM, em cooperação direta com as Big Techs. Plataformas digitais tornaram-se extensões da política externa americana. O algoritmo, agora, é um soldado disciplinado: amplifica narrativas pró-Ocidente, reduz o alcance de vozes dissonantes e vigia, em tempo real, a adesão ideológica dos usuários. A manipulação é invisível e contínua; o campo de batalha é o feed.
No plano jurídico, o império opera através do lawfare transnacional — a instrumentalização seletiva do direito para destruir adversários políticos e travar projetos de soberania. O discurso da anticorrupção e da defesa institucional tornou-se a fachada moral da guerra híbrida. O caso brasileiro é o protótipo: a Operação Lava Jato abriu as portas para a desindustrialização, o enfraquecimento da Petrobras e o retorno da dependência externa. Cada sentença judicial e cada delação premiada foram armas de precisão de uma ofensiva informacional global.
A guerra cibernética completa o cerco. Parcerias entre os EUA e países latino-americanos em “defesa digital” e “cooperação tecnológica” criam dependências de infraestrutura. O que parece ajuda técnica é, na prática, acesso privilegiado a dados governamentais, redes críticas e comunicações oficiais. A soberania digital é desmontada sob o rótulo de interoperabilidade. Enquanto isso, operações hunt-forward do USCYBERCOM, apresentadas como missões de proteção, funcionam como coletas preventivas de inteligência em servidores aliados.
Essa engrenagem — MISO, lawfare, ciberdefesa e Big Tech — forma a face invisível da nova dominação. Ela não mata; condiciona. Não censura de forma explícita; diminui a visibilidade. Não destrói fisicamente; deslegitima simbolicamente. A vítima acredita ser livre enquanto repete, sem perceber, as palavras do seu opressor. O império descobriu a fórmula perfeita: a guerra psicológica permanente, travada sob o manto da liberdade de expressão.
A América Latina vive hoje no epicentro dessa disputa cognitiva. Cada notícia, cada discurso, cada lei sobre plataformas digitais é uma batalha pela soberania do real. E é aqui, no território da linguagem e da percepção, que se decide o futuro da região. Porque quem controla o sentido, controla o mundo.
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* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



