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Paulo Henrique Arantes

Jornalista há quase quatro décadas, é autor do livro "Retratos da Destruição: Flashes dos Anos em que Jair Bolsonaro Tentou Acabar com o Brasil". Editor da newsletter "Noticiário Comentado" (paulohenriquearantes.substack.com)

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O ativismo nosso de cada dia

O núcleo ‘duro’ que legitima a atuação judicial precisa ser o respeito ao Direito vigente

Fachada do STF (Foto: Wallace Martins/STF)

Ativismo judicial, bem exemplificado pela lawfare americana, costuma ser o nome que damos a atos do Judiciário dos quais discordamos. Quando concordamos, costumamos dizer que se fez justiça, ou, mais correto, que se aplicou o direito. Na verdade, mais importante do que classificar uma medida judicial como ativismo ou não é verificar se a interpretação do juiz apresenta-se bem fundamentada. De todo modo, “interferências” da corte constitucional no Legislativo, frequentes no Brasil, podem ser chamadas de ativismo por muita gente, mas, notoriamente, preenchem lacunas resultantes da inação do Parlamento.

O termo “ativismo” é adotado para rotular três situações distintas: primeiro, atuação judicial pautada pelo objetivo de promover mudança social; segundo, tomada de decisão sem obediência ao texto de regras jurídicas ou aos precedentes estabelecidos; terceiro, avanço do Poder Judiciário sobre temas tradicionalmente considerados de competência de outros Poderes.

Em qualquer hipótese, o núcleo ‘duro’ que legitima a atuação judicial precisa ser o respeito ao Direito vigente – é o que promove hoje o Supremo Tribunal Federal perante os crimes contra o Estado de Direito cometidos por Jair Bolsonaro e asseclas E foi o que realizou o Tribunal Superior Eleitoral quando da última eleição presidencial, com o ministro Alexandre de Moraes na qualidade relator no primeiro e presidente do tribunal no segundo. A gritaria contra a lisura da conduta do magistrado – e das cortes – é desesperada e patética. A ideia de recorrer do Parlamento em busca de “anistia” é estapafúrdia e cínica.

Dão-se poder e independência a juízes em uma democracia para que façam valer o Direito. Depreende-se, portanto, que uma coisa é tentar encontrar interpretações criativas, mas plausíveis, que viabilizem formas de atuação judicial. Outra seria abandonar de antemão o compromisso com as regras que as instituições criaram no passado. 

Os constituintes criaram o Mandado de Injunção e a Ação Direita de Inconstitucionalidade por omissão. A inação do Parlamento, ou sua pouca efetividade no cumprimento de decisões judiciais, exige do STF mecanismos, digamos, mais criativos e que, mesmo assim, não violem da independência entre os Poderes. O problema mais sério surge quando o conceito de ‘inação’ é aplicado a uma decisão majoritária de não tratar de determinado tema em dado momento, ou a um atraso inevitável na negociação e na discussão democrática entre forças políticas e sociais, como vem acontecendo quanto à atuação das big techs e a disseminação industrial de fake news.

Analistas do cenário jurídico brasileiro criticam quando magistrados decidem baseados em suas preferências pessoais, especialmente as partidárias. É claro, algo que nada tem a ver com interpretar a lei. Porém, em um patamar menos rasteiro que o do envolvimento partidário encontram-se os valores éticos, políticos e morais de alguém que é juiz de Direito e cujo cargo não os elimina. Um ser humano vai interpretar a lei. Como se sabe, a interpretação é pessoal. 

Ativismo judicial e separação de Poderes compõem um tema que não raro une conservadores e progressistas. Faz sentido, pois, chamarmos de “ativismo” uma decisão judicial com a qual não concordamos. Portanto, ninguém defende o ativismo judicial, mas todos defendem medidas judiciais que lhes agradem, e então lhes dão outras denominações. Há desagradados e agraciados nos dois lados do balcão ideológico.

A visão de que o STF venha substituindo indevidamente o Congresso Nacional é míope. Existem remédios constitucionais – e eles devem ser usados - indicados quando a omissão de um Poder inviabiliza direitos. Várias decisões do Supremo categorizadas como ‘ativistas’ têm fonte no próprio Legislativo, como a Lei da Ficha Limpa, a Lei de Cotas, as células-tronco e as regras de demarcação das terras indígenas.

Em medidas distintas, todos os juízes são éticos-políticos-morais. Quem valoriza a literalidade da lei está valorizando um tipo de interpretação em detrimento de outra, tanto que se chama de interpretação literal, ou gramatical. Há uma opção valorativa de que o caso deve ser decidido pelo sentido convencional da norma ou mesmo pela intenção apresentada por uma parcela dos legisladores nos anais do Legislativo - é uma opção de interpretação.

Enfim, não existe uma maneira absolutamente neutra de interpretar a lei: todas as formas carregam uma opção de valoração sobre a qual estará o foco – o sentido convencional da norma, a vontade do legislador ou a consequência da decisão.

O filósofo e jurista americano Ronald Dworkin, diz que por trás da opção de seguir a letra da lei há uma convicção moral de que as escolhas políticas daquela vontade legislativa devem ser valorizadas independentemente do contexto, independentemente das consequências, independentemente de conflitos com outros valores do sistema jurídico. É uma opção valorizar um certo tipo de democracia, um certo tipo de autoridade, um certo tipo de atores.

A atuação de Alexandre de Moraes, especialmente durante as últimas eleições, enquanto presidente do TSE,  costuma ser apontada como exemplo ativismo judicial. Por óbvio, os vencedores do pleito o aplaudem, os derrotados o atacam. Os que se interessam pelo Direito, enxergam erros e acertos, mas o primeiro ponto a ser levando em conta no cenário eleitoral de 2022 é a omissão do Ministério Público Eleitoral, que praticamente nada vez diante a enxurrada de fake news que dominou o embate. O Observatório da Desinformação On-line nas Eleições de 2022 da Fundação Getúlio Vargas identificou 427 ações sobre desinformação apresentadas à Justiça por partidos, coligações, federações e candidatos. O MP foi autor de 1% das denúncias. A Procuradoria Geral Eleitoral passou 70 dias da campanha eleitoral sem apresentar questionamentos ao TSE sobre a prática de desinformação contra o processo eleitoral.

Era natural que o tribunal tomasse medidas aparentemente “ativistas” para conter movimentos orquestrados visando a desacreditar as eleições e a própria democracia.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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