Uma entrevista com Milton Hatoum, eleito para a Academia Brasileira de Letras
Milton Hatoum acaba de ser eleito para ocupar a Cadeira 6 da ABL
Milton Hatoum acaba de ser eleito para ocupar a Cadeira 6 da Academia Brasileira de Letras, que foi de Cícero Sandroni. Bons ares sopram sobre a confraria fundada em 1897. Nada contra compositores e jornalistas tornarem-se imortais, como virou hábito, mas a Casa de Machado de Assis se engrandece toda vez que escolhe um escritor de verdade para compor seus quadros.
Milton Hatoum não é apenas um dos grandes escritores do Brasil. É um intelectual ciente de seu papel político, comprometido com a democracia, preocupado em não deixar morrer na memória o horror da ditadura civil-militar que oprimiu o país por 21 anos.
Era setembro de 2018, às vésperas da eleição de Jair Bolsonaro, quando este jornalista entrevistou Hatoum para uma revista de saudosa lembrança. Reproduzimos aqui um breve trecho da conversa, em que o escritor expõe sua consciência social, confirmando-se como um dos grandes nomes da literatura que não faz vista grossa à política, mas se engrandece compreendendo-a.
Você acaba de receber o Prêmio Juca Pato de Intelectual do Ano. Qual o papel dos intelectuais neste momento por que passa o país?
Quando a democracia é ameaçada, por exemplo com alusões a fraude nas eleições, com manifestações de alguns militares, com sinais explícitos de autoritarismo e obscurantismo, eu acho que os intelectuais, os escritores, os artistas e a sociedade de modo geral devem se empenhar em garantir o processo democrático. De modo geral, o intelectual deve ter uma visão humanista, de compreensão dos valores, de compreensão da História, das contradições sociais, das injustiças. A perspectiva humanista é aquela de que fala um grande intelectual palestino americano, Edward Said, em um livro brilhante chamado “Humanismo e Crise Democrática” – eu acho que, inclusive, é um livro que interessa aos advogados. Ele tem outro livro, chamado “Representações do Intelectual”, que por sinal eu traduzi. A perspectiva do intelectual humanista é sempre dizer não ao poder, falar a verdade ao poder, sem escamotear a verdade e sem ser fiel aos dogmas.
Sem proselitismo partidário, suponho.
Sem proselitismo partidário e, também, sem ser fiel às religiões. Às vezes você se refugia num dogma ou numa religião ou num partido para escamotear verdades. Eu acho que não é esse o papel do intelectual. Nesse aspecto, eu concordo com Edward Said.
Há uma corrente intelectual no mundo denunciando novas formas de solapar a democracia, mediante conspirações sem uso das armas. Inclusive, o livro mais falado do momento é “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky. Você enxerga essa tendência?
Acho que são ondas cíclicas, que vão e voltam, dependendo muito da crise do capitalismo, de uma crise sistêmica do próprio capitalismo. Na Europa, a ascensão da extrema direita se deve muito à questão dos refugiados, do desemprego e da crise econômica de modo geral. Uma das teses mais simplórias da extrema direita francesa, do Le Pen e da filha dele, é a de que se você tirar os cinco milhões de árabes da França, entre argelinos, marroquinos, negros e africanos, você resolve o problema.
Como se a tragédia social nas ex-colônias francesas não fosse responsabilidade dos próprios colonizadores...
... e como se De Gaulle, depois da guerra, não tivesse contemplado essa entrada de imigrantes. A Europa e os Estados Unidos precisam de mão de obra. Os Estados Unidos foram construídos por imigrantes. O Brasil também, em parte, com o trabalho do escravo africano, dos índios e dos imigrantes – São Paulo simboliza isso, é uma cidade de imigrantes estrangeiros e migrantes brasileiros, de todas as regiões do Brasil. São Paulo é este caldeirão enorme de imigrações. No Brasil, eu acho que há uma particularidade. Um dos candidatos a presidente, como não tem argumento nenhum, como ele é raso intelectual e moralmente, ele insiste na violência como arma, para usar uma palavra que ele endeusa. Ele usa argumentos simplórios e perigosíssimos para barrar a violência. Usa o argumento da anticorrupção ao mesmo tempo em que tinha empregados fantasmas em seu gabinete. É uma mentalidade obscurantista e saudosa da ditadura.
A ditadura civil-militar brasileira é bastante presente em sua obra. O que há de autobiográfico nela?
O meu primeiro romance, “Relato de um Certo Oriente”, não fala nada da ditadura. “Dois Irmãos” tem uma cena violenta de um professor que é preso e assassinado. A ditadura aparece mais em “Cinzas do Norte” e, agora, em “A Noite da Espera”. Eu vivi dos 12 aos 20 anos, quando fui embora do Brasil, sob uma ditadura. Minha juventude foi vivida na ditadura, e isso me marcou muito. Eu morei em Brasília, muito jovem. Saí de Manaus com 15 anos, fui morar sozinho em Brasília para cursar o ensino médio e depois entrar na UNB para estudar arquitetura. Saí de uma cidade relativamente pacata, provinciana, e comecei a morar em uma cidade cujo ambiente era muito repressivo, muito opressivo. Foi na época do A.I. 5, com várias invasões à universidade, com prisões sistemáticas, desaparecimentos. Isso foi muito marcante para mim. Agora, “A Noite da Espera” não é um romance político. O drama do narrador, Martim, é um drama subjetivo, é a perda da mãe, é a separação da mãe que se apaixonou por outro homem, um artista, e deixou o pai, um engenheiro muito conservador, que então sai de São Paulo e vai morar com o filho em Brasília. E aí há uma tensão entre eles também. O pai é um ressentido, um homem que foi traído, e naquela época as separações não eram tão comuns em famílias de classe média do (bairro paulistano do) Paraíso. Eu comecei a pensar neste romance quando ainda morava na França e na Espanha.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.