Mattarella versus Meloni: duas Itálias em rota de colisão
Meloni exige reformas que, aos olhos de Mattarella ou de setores constitucionais, podem tensionar o modelo institucional vigente
Desde que Giorgia Meloni assumiu o cargo de Primeira-Ministra da Itália, em outubro de 2022, sob a bandeira do partido Fratelli d’Italia (FdI), liderado por valores nacionais-conservadores, o papel de Sergio Mattarella como Presidente da República - guardião da Constituição e mediador institucional - passou a ganhar contornos de tensão crescente. Ainda que ambos, como políticos tarimbados, afirmem manter “ótimas relações”.
Contudo, várias divergências de fundo estão se delineando - e poderão marcar uma nova fase da política italiana, com implicações para a Europa, a governabilidade e o balanço de poderes. Vale a pena compreender e refletir sobre essas divergências, porque elas refletem de maneira exemplar o embate, não apenas na Itália mas na maior parte do mundo, inclusive aqui no Brasil, entre os valores da democracia e os autoritarismos de direita.
Os principais e mais evidentes contrastes estão no âmbito institucional: o papel do Executivo versus papel do Estado.
Como cabeça de Estado, Mattarella constantemente sublinha a primazia da Constituição, dos contrapesos institucionais e do dever de moderação. Exemplos incluem suas muitas advertências quanto à reforma da justiça ou à pressão sobre o sistema judicial.
Já Meloni, como chefe de governo, impulsiona uma agenda mais ativa, com intuito de “fortalecer” o Executivo e dar à Itália um papel mais assertivo no cenário externo - o que exige reformas que, aos olhos de Mattarella ou de setores constitucionais, podem tensionar o modelo institucional vigente.
Visão sobre a Europa e soberania nacional
Mattarella, que ontem pronunciou contundente discurso no Parlamento italiano mostrando-se contra a política das “tarifas trumpianas” e as guerras em curso, sublinha a necessidade de cooperação europeia, de múltiplos Estados unidos sob regras partilhadas - e critica o uso de barreiras protecionistas ou unilateralismos como risco para a paz e para a economia.
Meloni, embora declare não ser uma eurocética radical, defende que “a Itália primeiro” deve ter peso maior, critica burocracias de Bruxelas, e reivindica mais autonomia e voz para Roma no seio da União Europeia. Esta diferença filosófica - entre “Europa como comunidade de destino” e “Itália como protagonista soberana” - traduz-se em políticas concretas e, muitas vezes, em atritos.
Segurança, Estado de direito e liberdades civis
Meloni liderou a aprovação por decreto de uma lei de segurança controversa em abril de 2025, que concedeu novas proteções às forças de ordem e reduziu salvaguardas de liberdades individuais.
Mattarella manifestou reservas quanto a cláusulas consideradas excessivas ou não compatíveis com garantias constitucionais, reclamando que “o modelo dos anos cinquenta” não basta para o mundo de hoje, mas deve ser preservado.
Política externa e aliança
Meloni busca aliança forte com os EUA, inclinação transatlântica reforçada, e presença assertiva no Mediterrâneo e no Norte da África. Mattarella, por seu lado, enfatiza o papel da Europa e o multilateralismo, e expressou preocupação com guerras e agressões que ameacem a ordem internacional.
Diante do quadro cada vez mais divergente entre os dois líderes italianos, as maiores preocupações dizem respeito à governabilidade: Se o chefe de Estado e o chefe de Governo operam com visões divergentes, o risco de bloqueios institucionais e de crises políticas aumenta - sobretudo em momentos de reforma constitucional ou choque de poderes.
A Itália é vista como um dos baluartes da democracia europeia. Tensões entre Executivo agressivo e Estado moderador (ou vice-versa) chamam atenção para possíveis mudanças no equilíbrio de liberdades, controle de poder e papel dos contrapesos.
A Itália, por peso e localização, tem impacto significativo na UE e no Mediterrâneo. Divergências internas sobre soberania, cooperação europeia e alinhamentos externos podem alterar alianças e capacidades de ação de Roma no cenário global.
Meloni lidera um partido que tem raízes nacionalistas e certa retórica de confronto - enquanto Mattarella simboliza continuidade e moderação. A coexistência destes dois polos no topo do poder cria tensão simbólica e real.
O que observar nos próximos meses?
Meloni e seu grupo (que forma maioria no Congresso) pressiona para executar uma reforma constitucional a partir dos seus parâmetros de direita. Mattarella pode usar vetos ou condicionamentos institucionais para garantir compatibilidade com a Carta atual vigente, que é claramente de viés democrático.
Nesse sentido, o papel dos próximos anos de mandato de Mattarella (até 2027) será crucial: ele permanece como árbitro institucional - e o grau de “autonomia” real do governo dependerá de sua postura.
No seu forte discurso pronunciado ontem, Mattarella exprimiu uma outra grande preocupação: a que diz respeito à ordem mundial, hoje em pedaços. “É preciso preservá-la”, disse ele, levantando o olhar em direção à plateia. Como quem diz: também é nossa tarefa, das opiniões públicas, vigiar. “Essa ordem, surgida a partir das condições do mundo dos anos 1950, precisa ser reelaborada conforme o mundo tão diferente de hoje - mas precisa ser preservada”. Por fim, dedicou um trecho de seu discurso aos estrangeiros que trabalham na Itália - nada menos que dois milhões, ou seja, 10% do mercado de trabalho. Seu desejo é que a União Europeia enfrente o fenômeno migratório em sua dimensão supranacional. É preciso regulamentar as questões de formação e de acesso. “Disso resultaria, além do combate à desordem da imigração clandestina, uma derrota dos cruéis traficantes de seres humanos, cuja ação criminosa provoca, quase todos os dias, vítimas inocentes que não podem deixar indiferentes às nossas consciências”.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



