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Washington Araújo

Jornalista, escritor e professor. Mestre em Cinema e psicanalista. Pesquisador de IA e redes sociais. Apresenta o podcast 1844, Spotify.

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Inventário das sombras no plenário da Câmara reflete fuga da compostura

Deputados abandonam a civilidade, promovendo motins, brigas, misoginia, palavras de baixo calão, elogio a torturadores e discursos de ódio envergonham a nação

Plenário da Câmara dos Deputados (Foto: Adriano Machado / Reuters)

Compostura não é mero ornamento social, mas a essência da busca pela excelência humana em meio ao caos das interações cotidianas. Ela se manifesta no respeito inabalável às opiniões contrárias, na valorização da diversidade de raças, etnias, gênero, culturas, idiomas, classes sociais e religiões, transformando diferenças em pontes ao invés de abismos. Compostura é a arte refinada de conduzir-se com urbanidade, elevando a civilidade a um patamar onde o diálogo prevalece sobre o confronto, e o indivíduo se torna guardião da harmonia coletiva.

É espantosa a capacidade de nossos deputados federais em desperdiçar oportunidades de dignidade, frequentemente optando por exibições que envergonham a nação inteira, enquanto senadores, embora menos propensos, ocasionalmente derrapam de forma grotesca nesse quesito vital.

A ausência de compostura no âmbito privado já danifica as relações sociais, gerando prejuízos irreparáveis à convivência harmônica; no espaço público, porém, torna-se inadmissível, inaceitável, servindo como termômetro preciso da qualidade humana e ética de representantes eleitos em pleitos democráticos regulares. A compostura, assim como a cortesia, “é o príncipe de todas as virtudes”, capaz de sustentar a democracia em tempos de extrema turbulências.

Retrocedendo à história recente e remota do Parlamento brasileiro, uma pesquisa em fontes confiáveis revela uma cronologia alarmante de episódios onde deputados e senadores, especialmente da extrema direita, violaram a liturgia de suas funções elevadas, beirando a indignidade e merecendo o repúdio unânime da sociedade.

Em 1929, no Rio de Janeiro, o deputado Luís Simões Lopes (RS) reagiu a uma bengalada do colega Sousa Filho com tiros de revólver, resultando na morte deste último no plenário, em um ato de violência impulsiva que chocou o país e destacou a fragilidade da civilidade parlamentar inicial.

Em 1960, Tenório Cavalcanti (RJ), conhecido por sua postura truculenta, sacou uma submetralhadora contra Antônio Carlos Magalhães (BA) durante um debate acalorado na Câmara, gritando ameaças de morte antes de ser contido por colegas, configurando uma tentativa de intimidação que beirava o crime de ameaça e expunha a falta de decoro em discussões políticas.

Já em 1963, no Senado, Arnon de Mello (AL) disparou contra Silvestre Péricles (AL) em meio a uma discussão inflamada, acertando fatalmente José Kairala (AC), um homicídio no plenário que ilustrou a ausência total de controle emocional e respeito à vida em ambientes legislativos.

Avançando para 2003, o então deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) confrontou a deputada Maria do Rosário (PT-RS) no Salão Verde da Câmara, esbravejando “Jamais estupraria você porque você é muito feia”, uma declaração misógina que incitava ao ódio e configurava injúria e apologia ao estupro, repetida em 2014 com “Não te estupro porque você não merece”, levando a condenações judiciais posteriores.

Em abril de 2016, durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff, Bolsonaro dedicou seu voto ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, declarando “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, o meu voto é sim”, um elogio sombrio a um condenado por tortura que glorificava a ditadura militar e provocou repúdio internacional por apologia a crimes contra a humanidade.

Ainda em 2016, Bolsonaro trocou insultos com Jean Wyllys (PSOL-RJ) durante a mesma sessão, chamando-o de termos homofóbicos como “queimado” e “veado”, levando a uma reação em que Wyllys cuspiu nele, mas destacando a incitação ao ódio e quebra de decoro por parte de Bolsonaro.

Em fevereiro de 2021, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), da extrema direita, divulgou um vídeo com discursos violentos contra os ministros do STF, chamando-os de “hienas” e afirmando “vocês levariam uma surra de gato morto na rua” e “imaginem se a gente fechar o STF”, pregando apologia ao AI-5 e ao fechamento do tribunal, configurando ameaças à democracia que resultaram em sua prisão em flagrante e processo por quebra de decoro parlamentar.

Em novembro de 2018, Alberto Fraga (PL-DF) e Laerte Bessa (PL-DF), ambos da extrema direita, envolveram-se em uma briga física no plenário sobre a extinção da Casa Militar no DF, trocando empurrões e xingamentos como “seu safado”, configurando agressão e desrespeito ao regimento interno.

Em agosto de 2019, já como presidente, Bolsonaro reiterou elogios a Ustra, chamando-o de “herói nacional” em entrevista, defendendo que ele evitou o comunismo no Brasil, uma declaração que banalizava torturas documentadas e incitava negacionismo histórico.

Em 2023, Eduardo Bolsonaro (PL-SP) debochou da tortura sofrida pela jornalista Míriam Leitão durante a ditadura, postando “Que pena que não deu certo” em redes sociais, um ato de apologia à violência que gerou acusações de calúnia e difamação.

Na semana do Dia Internacional da Mulher, em 8 de março de 2023, o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) subiu à tribuna com uma peruca loira, autodenominando-se “deputada Nicole” e declarando “Me sinto mulher hoje, mulheres estão perdendo espaço para homens que se sentem mulheres”, um discurso transfóbico que ridicularizava parlamentares trans como Erika Hilton e Duda Salabert, configurando discriminação e quebra de decoro.

Em abril de 2023, o senador Sérgio Moro (União-PR) apareceu em vídeo durante uma festa junina em Brasília, insinuando que o ministro do STF Gilmar Mendes vende sentenças ao dizer “Não, isso é fiança. Instituto… para comprar um habeas corpus do Gilmar Mendes”, uma declaração caluniosa que imputava corrupção passiva ao ministro, levando à abertura de ação penal por calúnia no STF em junho de 2024, com julgamento marcado para outubro de 2025 nas próximas semanas.

Em novembro de 2023, a deputada Júlia Zanatta (PL-SC) atacou verbalmente Erika Hilton (PSOL-SP) em sessão, chamando-a de “aberração” e questionando sua identidade de gênero com gritos como “Você não é mulher de verdade”, um episódio de transfobia que levou a queixas por discriminação.

Em junho de 2024, Júlia Zanatta protagonizou outro confronto na Comissão de Direitos Humanos, interrompendo deputadas de esquerda com berros como “Vocês são cúmplices de bandidos” durante debate sobre segurança pública, configurando calúnia e interrupção indevida.

No mesmo mês, em 5 de junho de 2024, Nikolas Ferreira, Éder Mauro (PL-PA) e André Janones envolveram-se em empurrões no plenário, com Nikolas gritando “Vai pra rua se você é homem”, exigindo intervenção policial em uma briga que paralisou a sessão por agressão física.

Em julho de 2024, Júlia Zanatta desferiu insultos contra ambientalistas em comissão, chamando-os de “eco-terroristas” e ameaçando “vamos acabar com essa palhaçada”, um discurso que incitava ódio e desrespeitava o debate democrático.

Em maio de 2025, na Comissão de Infraestrutura do Senado, a ministra Marina Silva sofreu ataques misóginos de senadores da extrema direita, como Plínio Valério (PSDB-AM), que apontou o dedo e gritou “A mulher está nervosa, vá se acalmar”, interrompendo-a repetidamente e levando-a a deixar a sessão, um ato de violência de gênero que expôs machismo institucional.

Em julho de 2025, na mesma comissão, Marina Silva foi comparada a “grupos armados” e “câncer” por deputados ruralistas da extrema direita, com interrupções constantes e ameaças veladas como “Você vai pagar por isso”, configurando misoginia e intimidação.

Em fevereiro de 2025, a “guerra das plaquinhas” envolveu Nikolas Ferreira e Coronel Zucco (PL-RS) contra Lindbergh Farias (PT-RJ), exibindo cartazes com gritos como “Traidores da pátria devem ser punidos”, suspendendo a sessão em balbúrdia e incitando calúnia.

Em setembro de 2025, deputados da extrema direita do PL promoveram um motim ao sequestrar a Mesa Diretora da Câmara, impedindo que o presidente Hugo Motta (PP-PB) assumisse sua cadeira nos dias 16 e 17, exigindo com berros “Pauta a anistia agora ou não sai ninguém” para anistiar golpistas do 8 de janeiro, um ato de obstrução que configurava desobediência ao regimento e ameaça à ordem democrática, levando à votação de urgência no dia 18.

Ainda em setembro de 2025, o escárnio atingiu níveis inéditos com o episódio escandaloso na Câmara para aprovar a Proposta de Emenda à Constituição conhecida como PEC das Prerrogativas, que na essência funcionava como uma PEC da Bandidagem, blindando parlamentares contra ações penais sem autorização prévia da Casa, sob o pretexto de proteger mandatos mas efetivamente dificultando a responsabilização por crimes; aprovada por ampla maioria na Câmara em meio a protestos e acusações de corporativismo, a proposta foi debelada e enterrada por unanimidade na Comissão de Constituição e Justiça do Senado em 24 de setembro, após forte reação da opinião pública e relatório contrário do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), que destacou como o texto servia para “proteger corruptos” e minava a preceitos básicos da Constituição de 1988.

O Parlamento, qual mecanismo de relógio antigo com engrenagens enferrujadas pela acidez da incivilidade, paralisa o progresso nacional ao transformar debates em paradas abruptas, onde o tique-taque da democracia se perde em rangidos estéreis.

Esses casos, entre calúnias, difamações, agressões, troca de sopapos e brigas, ilustram uma erosão persistente da civilidade parlamentar, dominada por figuras da extrema direita que priorizam o confronto sobre o debate construtivo. É corriqueiro hoje em dia as pessoas falarem, sejam nos gabinetes refrigerados da Avenida Paulista ou na fila do pão em Petrolina ou Taubaté, que “o nível do Parlamento brasileiro alcançado em 2024 é provavelmente o mais baixo, o menos produtivo, que reúne o maior número de personagens sem compostura e sem consciência da elevada função que exercem”.

Acredito que devemos ser menos generalistas, porque a falta de compostura não é carência apenas do Congresso Nacional. Basta ver o elevado número de ameaças e até mortes no trânsito, em que as pessoas perdem a cabeça do nada, apenas por alguém ter entrado à direita sem ligar a seta ou ter buzinado demais, encontrando como reação motoristas com arma em punho.

Seria muita ingenuidade e pouca quilometragem de vida para não entender que a representação popular na seara política é um reflexo direto do nível de civilidade, educação e urbanidade da população brasileira como um todo.

É a constatação do velho axioma de que não podemos ter uma sociedade de ouro com indivíduos de chumbo.

Mais uma vez, a saída só tem uma direção: fortalecer o sistema educacional brasileiro desde as primeiras séries do ensino fundamental, para que a compostura volte a ser o alicerce de uma nação verdadeiramente civilizada.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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