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Denise Assis

Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964" , "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".

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Idosos consomem e sustentam famílias, mas são transparentes no Brasil

Tema do Enem expôs a invisibilidade dos idosos e a hipocrisia de uma sociedade que depende deles, mas finge não vê-los

Idosos consomem e sustentam famílias, mas são transparentes no Brasil (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Mais que uma escolha de tema para a redação do Enem deste ano, “Perspectivas acerca do envelhecimento na sociedade brasileira” foi um ato político. Obrigou os jovens — tanto os ricos e brancos, que saltaram dos carrões dos pais para a sala de provas, quanto os pretos, pobres e periféricos, que chegaram ao exame a bordo de ônibus sem ar-condicionado ou metrô — a refletirem sobre um contingente da população que eles mal veem, mal olham: os idosos. No máximo, para praguejar, quando, na corrida para algum compromisso, estão em seus caminhos, mais lentos porque a pressa já não é fundamental. Ao optar pelo tema, a juventude foi obrigada a refletir sobre o “avulso” em suas vidas. Sim, os idosos estão fora da linha de montagem e, portanto, avulsos.

Em um país embrutecido pela passagem do tufão Jair Bolsonaro pela Presidência da República — período em que os direitos do cidadão foram ignorados ou reduzidos —, um dos aspectos vilipendiados pelo seu ministro da Fazenda, Paulo Guedes, era o dos benefícios destinados aos aposentados. Costumava pregar aos quatro ventos, principalmente para plateias jovens, que o governo deveria desatrelar os proventos destinados aos aposentados do cálculo do reajuste do salário mínimo. E fazia questão de sublinhar em sua fala que os jovens estavam “sustentando vagabundos”. Em seguida, exaltava os benefícios dos que optam, hoje, por serem “empreendedores”, omitindo a informação — recém-revelada em pesquisa do IBGE — de que essa parcela precarizada não chegou a lugar algum, a não ser arcar com os gastos da escolha e não ter tempo para si.

O que Paulo Guedes não contava a seus ouvintes é que os “vagabundos” de hoje foram os ativos de ontem. E que, enquanto trabalhavam à exaustão, sustentavam os estudos dos jovens que hoje estão no mercado de trabalho — arcando com impostos para que se formassem em escolas públicas e universidades gratuitas. Ou não é assim que a roda gira? Ao incentivá-los a deixar de contribuir — é isso o que acontece com os autônomos, na maioria das vezes —, jogam na eternidade da vida laboral os que hoje chegam ao limiar determinado como “idoso”, os maiores de 65 anos.

E somos muitos. De acordo com o último Censo Demográfico, o de 2022, o total de pessoas com 65 anos ou mais no país chegou a 10,9% da população, com alta de 57,4% em relação a 2010, quando esse contingente era de 7,4%. É o que revelam os resultados do universo da população do Brasil, desagregada por idade e sexo, daquele Censo.

De acordo com técnicos do Instituto, o Estatuto do Idoso define como idosa a pessoa de 60 anos ou mais. O corte de 65 anos e além foi utilizado na análise do IBGE para tornar possível a comparação com dados internacionais e com outras pesquisas que utilizam essa faixa etária, como as de mercado de trabalho. Toda essa “numerália” aponta para uma realidade já percebida e estudada por estatísticos: o aumento da população de 65 anos ou mais, em conjunto com a diminuição da parcela da população de até 14 anos no mesmo período (que passou de 24,1% para 19,8%), evidencia o franco envelhecimento da população brasileira.

Ao longo do tempo, a base da pirâmide etária foi se estreitando devido à redução da fecundidade e dos nascimentos que ocorrem no Brasil. Essa mudança no formato da pirâmide etária passa a ser visível a partir dos anos 1990, e a pirâmide etária do Brasil perde claramente seu formato piramidal a partir de 2000. O que se observa ao longo dos anos é a redução da população jovem, com aumento da população em idade adulta.

Certamente, os encarregados de corrigir as redações não deverão encontrar essa profusão de dados nos milhões de textos que passarão pela banca examinadora. Impactados pela surpresa do tema — muitos apostavam em meio ambiente —, esses meninos serão obrigados a nos ver, a nos considerar como parte dessa sociedade que se movimenta sem que eles percebam, e que também consome. No Brasil, a “economia prateada” gera R$ 1,6 trilhão por ano. E esse volume continuará aumentando, de acordo com a agência de relações públicas e marketing norte-americana FleishmanHillard.

Saibam, jovens estudantes, que 34% dos idosos contribuem com as despesas das casas. São 38% responsáveis principais pela renda da família, complementando o que ganham com outras atividades para dar conta do orçamento no final do mês, quando são “aproveitados” no mercado de trabalho, e 28% sustentam sozinhos a casa toda, com netos, noras e filhos.

Não somos os “estorvos”, como dizia Paulo Guedes, apesar de muitas vezes “transparentes” para a maioria jovem da população. Em breve, seremos maioria. E como essa juventude lidará com esse dado inarredável?

O país caminhou para esse quadro a partir de 1965, com a criação da BEMFAM — Sociedade Civil Bem-Estar Familiar no Brasil —, entre os anos 1965 e 1980, no âmbito da XV Jornada Brasileira de Obstetrícia e Ginecologia, no Rio de Janeiro, um congresso com a aparência de lutar pelo “planejamento familiar”, quando, na verdade, atuou para a esterilização de mulheres pobres, principalmente no Nordeste. Aliadas a essas ações, as constantes campanhas dos governos de direita pela conscientização da necessidade de redução da taxa de fecundidade levaram a que, desde os anos 1990, o número de nascimentos venha caindo.

Ao fazer a pergunta acima, uma imagem me vem à mente. Num domingo qualquer, quando fazia o trajeto entre minha casa e uma feirinha, deparei-me com policiais em torno de uma lona preta, na esquina onde eu precisava passar. “O que houve?”, quis saber, na minha curiosidade habitual de repórter. “Uma senhora se jogou. Os vizinhos falaram que ela vivia sozinha e que os filhos e os netos a abandonaram. Nunca a visitavam".

Ali, aquecida pelo sol de outono, a realidade do envelhecimento ilustrou para mim, da forma mais concreta possível, o que pode ser envelhecer no Brasil. Os números acima preenchem o nosso conhecimento, mas a imagem daquela lona preta, que arremata este texto, nos fala de algo muito mais forte: a falta de afeto e de respeito por essa parcela que insiste em viver, mas às vezes desiste.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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