A crueldade do tema da redação do Enem
“Adultos que não enxergam futuro para os jovens esperam que eles reflitam sobre o horror que os espera na velhice”, escreve Moisés Mendes
Adultos maduros sempre acharam que os jovens nunca souberam e nunca quiseram saber o que poderia acontecer com a sua juventude no mês seguinte. Hoje, eles não desejariam saber o que está a esperá-los na semana que vem.
É assim que acontece, mesmo que adultos maduros tenham um dia sido jovens desligados. São de muitos deles, desses adultos maduros, os textos que se repetem na internet, com abordagens jornalísticas ou acadêmicas, ou meros palpites, informando que os jovens da geração Z não querem saber do futuro imediato deles mesmos.
Haveria inutilidade nesse esforço de tentar enxergar mais adiante com um mínimo de esperança ou otimismo. Uma frase síntese desse comportamento pode ser tirada das muitas declarações de jovens sobre o sentimento de desilusão: dedique-se ao momento sem empenho, sonhos e fantasias, porque o amanhã é deprimente.
A geração Z, dos nascidos entre 1997 e 2012, estaria vendo cenários deprimentes porque seria a mais desencantada e depressiva das gerações do pós-guerra. São, pelo clichê mais usado, os nativos digitais.
Essa geração, que já pode ter quase trintões, forma a maioria dos participantes do Enem hoje. Dos 4,8 milhões de inscritos, bem mais da metade tem entre 16 e 19 anos de idade. São 2,6 milhões.
Eles foram provocados por esse apelo no tema da redação: escrevam sobre ‘Perspectivas acerca do envelhecimento na sociedade brasileira’. O jovem foi convocado a refletir sobre pautas que os adultos maduros não conseguem resolver.
O tema da velhice longínqua é quase uma crueldade com quem não vê perspectiva de futuro para daqui a alguns meses. Mas pedem que eles falem dos idosos – porque ninguém mais pode ser chamado de velho –, olhando os que estão ao seu redor nessa sociedade que maltrata a velhice.
Vocês, que não pensam mais como seus pais e avós pensavam, que não se dedicam com romantismo à trajetória clássica da formação que levaria a alguma profissão e à estabilidade – vocês devem nos dizer como enxergam a velhice.
Coloquem-se na situação dos idosos de hoje e tentem ver em perspectiva, porque essa é a exigência do tema da redação, o que será de vocês daqui a 40, 50 ou 60 anos.
Não há como fugir de uma pauta escamoteada por todos, do setor público às instituições, em todas as instâncias, em séculos e em todas as décadas recentes. Mas não deixa de ser uma crueldade com os jovens.
Gerações de adultos já a caminho da velhice, que cuidam dos velhos de forma precária, quando cuidam, pedem que os jovens reflitam sobre a velhice, a individual e intransferível, e também sobre a velhice coletiva.
Essa geração jovem, que na maior parte do mundo branco não tem a memória de guerras e de grandes traumas, é convidada a antecipar um retrato crítico da velhice que vem aí e que pode ser pior que a do século 20 e da que se apresenta diante dos seus olhos hoje.
Dirão que todos temos, no nosso entorno familiar ou de conhecidos próximos, muitos jovens que subvertem esse perfil associado ao desencanto com o mundo desgovernado e desorientado das pessoas maduras. Mas não é deles que estamos falando.
Pesquisas dizem que a geração do Enem é, das últimas em sua fase jovem, a que mais está pronta para desistir da escola, do trabalho e dos apelos para que se aperfeiçoe profissionalmente. Porque o futuro se escondeu atrás de sombras formadas pelos adultos maduros.
Mas, mesmo assim, o Enem os convida ao sacrifício de escrever sobre a velhice. O apelo para que reflitam pela escrita, que também é mais sacrificante para eles, ganha o agravante de que pedem para que parem e pensem na velhice.
Metrô e ônibus lotado, competição sem sentido, rotina, um chefe inseguro e deprimido, uma carreira que não existe mais como diziam que existia – e o Enem pedindo que eles reflitam sobre a velhice, o Estatuto do Idoso, a solidão, o etarismo, o abandono, a aposentadoria e a incapacidade do Estado, que já não cuida das crianças, de cuidar dos seus velhos.
O tema do Enem sugere que os jovens precisam compreender que a correção do que está errado e não funciona será tarefa deles mais adiante.
As gerações que falharam até agora se sentem no direito de dizer aos jovens que eles têm a missão de pensar no futuro como sendo um mundo de gente cada vez mais velha. E talvez muito pior do que o mundo que temos hoje.
Adultos maduros desse mundo cada vez mais discriminador, racista, armamentista e fascista esperam que os jovens digam pelo menos que assim como está não pode ficar.
Essa redação que vocês leram até aqui é de autoria de um idoso que fez quando jovem quase tudo o que a geração Z pretende fazer ou não fazer, por ação ou por contemplação e inércia, porque também achava que o futuro é deprimente.
Mas vocês já sabem que os mais velhos estão e estarão sempre cobrando dos mais novos o que eles não conseguem melhorar, desentortar ou resolver. O mundo que os espera foi sendo construído pelos adultos de hoje.
A velhice será sempre um tema a ser largado no colo dos outros, inclusive na redação do Enem.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



