Guerra civil no MAGA: o império em ruptura
O racha entre Donald Trump e J.D. Vance expõe a batalha final pelo futuro da direita americana — uma disputa que atravessa religião, poder militar e hegemonia
O movimento que prometeu “tornar a América grande novamente” entrou em colapso interno. De um lado, Trump, o oligarca que transformou o Estado em empresa familiar; do outro, Vance, o ideólogo que quer convertê-lo em regime teocrático. No centro, a guerra por Israel, pelo Pentágono e pelo controle da narrativa global.
O império em convulsão
Os Estados Unidos vivem hoje um processo de autodecomposição imperial que não se manifesta nas fronteiras, mas no coração do poder. O movimento que, durante uma década, se apresentou como o grito de revanche da América esquecida — o MAGA — tornou-se a arena de uma guerra civil ideológica, teológica e geopolítica. O que era um projeto de restauração nacional virou o campo de batalha de elites em ruína, teocratas em ascensão e radicais que sonham em incendiar o sistema por dentro.
A cisão não é apenas política; é ontológica. O MAGA dividiu o país em torno de dois modelos de destino: de um lado, Donald Trump, o empresário de cassinos que transformou o Estado em espelho de seu império privado; do outro, J.D. Vance, o ideólogo que pretende refundar a República sobre bases religiosas e morais. Entre ambos, milícias digitais, teólogos de guerra, pastores-influenciadores e oligarcas financeiros disputam o comando da máquina de poder mais complexa do planeta. O império que colonizou o mundo pela força das armas e da informação agora trava sua guerra final dentro de si mesmo.
Essa guerra não se dá em trincheiras, mas em algoritmos, tribunais e púlpitos. O racha no MAGA não é uma crise doméstica: é a nova fase da guerra híbrida global, em que as linhas entre fé, propaganda, economia e militarização se dissolvem. O resultado é um regime em gestação — simultaneamente teocrático e corporativo — que já projeta seus efeitos sobre Israel, a Europa e a América Latina. A destruição interna do império é, hoje, o principal fato geopolítico do Ocidente.
O objetivo deste artigo é radiografar essa guerra interna com precisão cirúrgica: identificar seus exércitos, ideologias e estratégias e compreender como o colapso do MAGA reflete o colapso da hegemonia americana. O que se vê não é a crise de um governo, mas o prelúdio de uma mutação histórica — um império que, depois de subjugar o planeta, volta suas armas contra o próprio corpo.
O trono sitiado: Donald Trump e o império do caos
Donald Trump é menos um político do que um sintoma. Ele não inventou o colapso americano; apenas lhe deu rosto, método e espetáculo. O magnata que transformou o cassino em modelo de Estado foi o operador final de uma lógica que o próprio império cultivou durante décadas: a fusão entre entretenimento, finança e poder. Sob Trump, a Casa Branca deixou de ser centro de racionalidade política e passou a funcionar como palco de reality show, em que a performance substitui a governança e a lealdade pessoal vale mais do que qualquer doutrina.
Trump não é um conservador — é um oligarca oportunista que percebeu o vazio ideológico de um país exausto e preencheu esse vácuo com o culto de si mesmo. Sua retórica nacionalista é apenas o disfarce de um projeto profundamente corporativo: reduzir o Estado à função de proteger os interesses do capital que o sustenta. O “America First” nunca significou soberania nacional, mas soberania empresarial. Foi a tradução política de um império que, incapaz de produzir hegemonia moral, tenta sobreviver pela acumulação e pelo espetáculo.
A relação de Trump com Israel é o exemplo máximo dessa instrumentalização. Ele não é pró-Israel por convicção teológica ou solidariedade histórica; é por cálculo. Israel funciona, para Trump, como um ativo simbólico e financeiro: um canal de acesso à elite evangélica americana, aos doadores do lobby sionista e aos think tanks militares que garantem sustentação no Capitólio. Sob seu governo, o apoio a Israel tornou-se mercadoria política — uma transação entre votos, armas e influência. O que a direita religiosa vê como aliança espiritual, Trump trata como contrato.
O trono que ele ocupa, porém, é frágil. A mesma máquina que o ergueu — mídia corporativa, Big Techs, Wall Street e o complexo militar-industrial — aprendeu a operar sem ele. O império que Trump diz comandar já se reprograma para o pós-Trump. Dentro do MAGA, ele é simultaneamente o pai fundador e o obstáculo à sucessão. Sua incapacidade de ceder o palco transformou o movimento em seita e o Partido Republicano em extensão de sua persona narcísica. O poder pessoal de Trump é absoluto apenas enquanto o caos lhe serve; fora dele, se dissolve.
O escândalo Epstein, os processos judiciais e o cerco institucional não são apenas episódios de corrupção, mas metáforas do império em declínio. Trump encarna a fusão final entre poder e degenerescência — a oligarquia financeira que perdeu qualquer noção de limite ético e moral. Ele é o espelho deformado de uma elite que, após décadas exportando crises e guerras, agora enfrenta seu próprio colapso moral interno. É por isso que o MAGA gira em torno de Trump como um buraco negro: tudo o que se aproxima é tragado pela gravidade de sua ruína.
Hoje, Trump governa um império sitiado. Perdeu o monopólio da narrativa e o controle da máquina. Em seu entorno, surgem sucessores, generais e ideólogos que se dizem mais fiéis à “causa” do que ao homem. O que o mantém no trono não é a força, mas o medo — o pavor de que, sem ele, o MAGA perca sua alma. E é exatamente esse medo que alimenta o próximo ato da tragédia americana: a ascensão do herdeiro doutrinário que promete substituir o caos por fé, a anarquia por cruzada e o mito por dogma.
O herdeiro ideológico: J.D. Vance e a construção do Estado pós-liberal
J.D. Vance é a antítese e o herdeiro de Donald Trump. Se o magnata encarnou o império do caos, Vance representa a tentativa de transformar esse caos em doutrina. Formado nas entranhas do establishment que diz combater — Yale, Wall Street e o Vale do Silício —, ele surge como o produto perfeito da metamorfose da direita americana: um tecnocrata convertido em profeta, um intelectual de guerra que prega ordem moral em meio à dissolução da república liberal.
Vance compreendeu o que Trump nunca entendeu: o MAGA não é apenas uma máquina de ressentimento, mas uma oportunidade histórica de refundar o Estado sobre novas bases teológicas e militares. Seu discurso pós-liberal propõe substituir os princípios iluministas da democracia americana por um modelo de “governo orientado ao bem comum” — eufemismo para um regime cristão-corporativo em que o poder espiritual se funde à razão de Estado. Não se trata de restaurar a Constituição, mas de superá-la, transformando a América em uma civilização hierárquica e moral, em que a obediência é virtude e o pluralismo, decadência.
A retórica de Vance bebe nas fontes do catolicismo integralista e do nacionalismo europeu entre guerras. Ele rejeita a ideia de liberdade individual como fundamento político e resgata a noção de autoridade como virtude civilizatória. Não fala em “direitos”, mas em “deveres”; não invoca “democracia”, mas “ordem”. Essa inversão semântica é o núcleo do seu projeto: converter a república liberal em um Estado confessional de mercado, em que fé, capital e segurança nacional coexistem sob uma mesma estrutura moral. É o retorno da teologia à política — e da moral à geopolítica.
Enquanto Trump governa por instinto, Vance opera por coerência. Ele constrói doutrina: cita pensadores católicos como Chesterton, Alasdair MacIntyre e Deneen; defende políticas de incentivo à natalidade e de censura moral; exalta a autoridade paterna como pilar civilizacional. O Estado que imagina não é o Estado-empresa de Trump, mas o Estado-Igreja, regulado por valores morais e sustentado por um exército de fé. É uma ideologia de cruzada, não de contrato — a promessa de redenção como programa de governo.
Na política externa, Vance adota uma ambiguidade calculada. Em público, defende Israel como bastião civilizacional; nos bastidores, tolera o antissemitismo latente de parte da base alt-right e insinua que o “globalismo” é produto de elites judaicas cosmopolitas. Para os sionistas cristãos, é ortodoxo; para os neonazistas, é um aliado tático. Essa capacidade de falar simultaneamente às duas tribos — os que veneram Israel e os que o odeiam — é o que o torna perigoso: ele costura, sob o manto do cristianismo nacionalista, uma coalizão de antagonismos históricos.
A ascensão de Vance marca o segundo estágio do MAGA: a doutrinação do caos. Trump destruiu instituições; Vance quer substituí-las. Ele não busca o escândalo, mas a normalização da exceção — a transição suave de uma democracia exausta para uma teocracia burocrática, legitimada pela retórica da salvação. Onde Trump encenava impulsos, Vance estrutura princípios. Onde o magnata impunha desordem, o ideólogo propõe disciplina. A anarquia se transforma em dogma.
Por trás de sua aparência controlada, Vance expressa o mais perigoso dos sonhos americanos: o de um país purificado da dúvida, regido por Deus e armado até os dentes. Seu cristianismo não é fé; é engenharia política. A promessa de “ordem” que o sustenta é apenas o eufemismo elegante de uma guerra cultural permanente — agora travada com Constituição, exército e teologia a serviço do poder.
Três exércitos sob a mesma bandeira: os blocos em guerra dentro do MAGA
O MAGA já não é um movimento — é uma confederação de forças em guerra civil latente. Sob a retórica unificadora de “tornar a América grande novamente”, coexistem três projetos de país, três teologias do poder e três maneiras distintas de compreender o império. O que os une é o ódio ao liberalismo e à democracia; o que os separa é o modo de substituí-los. Essa é a anatomia da nova direita americana: um mosaico de lealdades que compartilham o mesmo inimigo, mas sonham com regimes incompatíveis entre si.
O primeiro bloco é o sionista-institucional, herdeiro direto da tradição neoconservadora. Ele reúne Donald Trump, Pete Hegseth, Marco Rubio, Ben Shapiro, o Republican Jewish Coalition e boa parte do complexo militar-industrial. Para esses atores, a centralidade de Israel é dogma geopolítico e espiritual. Sua missão é preservar o império americano como guardião de Jerusalém e dos mercados globais. São os generais da guerra cultural pró-Israel e os operadores da diplomacia coercitiva. Representam o braço imperial clássico: o Pentágono, Wall Street e as corporações de energia e defesa. Sua ideologia é o sionismo cristão estratégico — uma fusão entre cálculo geopolítico e apocalipse religioso. É a ala que ainda acredita que o império pode ser salvo pela força.
O segundo bloco é o cristão-nacionalista, liderado por J.D. Vance e orbitado por Josh Hawley, parte da Heritage Foundation e influentes teólogos católicos e evangélicos. Diferentemente do primeiro grupo, esse bloco não busca apenas dominar o império, mas refazê-lo por dentro. Seu horizonte é a construção de um Estado moral, governado pela fé e legitimado por uma elite teocrática. Eles veem o liberalismo como pecado e o secularismo como ameaça existencial. Sua cruzada é interna: reformar a América como civilização cristã, mesmo que isso signifique o fim de sua democracia. O poder, para eles, é um sacramento — e a obediência, uma forma de redenção. Sua guerra é espiritual, mas suas armas são políticas: escolas, tribunais, redes religiosas e a infiltração gradual das instituições. Esse bloco sonha com o Império da Virtude, não com o Império do Mercado.
O terceiro bloco é o mais subterrâneo e volátil: o alt-right neonazista, formado por Nick Fuentes, os Groypers, grupos supremacistas brancos e milícias digitais. Esse exército não tem disciplina institucional, mas domina o campo simbólico. É a juventude radicalizada das redes — uma geração que nasceu sob o ressentimento da globalização e foi moldada por algoritmos de ódio. Para eles, o MAGA não é uma doutrina, mas uma guerra civil racial. Rejeitam Israel, desprezam o sionismo cristão e flertam abertamente com o revisionismo histórico e o culto ao fascismo. Seu objetivo não é conquistar o poder dentro do sistema, mas implodir o sistema. São os portadores do instinto de morte do império: acreditam que a destruição é a única forma de purificação.
Esses três exércitos coexistem numa trégua instável. Trump ainda funciona como o símbolo unificador — o “imperador” que cada facção acredita poder manipular. Para o bloco sionista, ele é o aliado previsível que garante Israel e o capital. Para o bloco cristão, é o meio transitório para uma ordem moral. Para o alt-right, é o cavalo de Troia que abrirá as portas do sistema. Essa convergência é tática, não ideológica. O MAGA é hoje uma coligação de inimigos internos que se sustenta pela negação de tudo o que é externo: o feminismo, os imigrantes, os negros, os latinos, os liberais, os judeus dissidentes, a ONU, a ciência e a própria democracia.
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* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



