Gaza sob fogo: A limpeza étnica de um povo ao vivo e em tempo real
Desde outubro de 2023, a Faixa de Gaza tem sido palco de uma ofensiva militar israelense sem precedentes
O Êxodo, a Partida do Egito, é o mito fundador dos israelitas. Sua narrativa se estende por nada menos que quatro dos cinco livros do Pentateuco bíblico (Êxodo , Levítico , Números e Deuteronômio). A narrativa do Êxodo descreve uma história de escravidão egípcia dos israelitas, seguida por seu êxodo do Egito através de uma passagem no Mar Vermelho, em busca da Terra Prometida sob a liderança de Moisés. Desde o início, o estigma da perseguição e da deportação acompanha o povo judeu. Um carma coletivo, diriam os espiritualistas, que culminou com os horrores do holocausto: mais de 6 milhões de judeus retirados de suas casas, em vários países da Europa, e levados para os campos de concentração nazistas. A limpeza étnica no sentido amplo — a deportação forçada de uma população - definida como um crime contra a humanidade segundo os estatutos do Tribunal Penal Internacional (TPI) – até hoje paira como sombra tenebrosa na memória do povo judeu.
Nesse contexto, é espantoso que, neste momento, seja o próprio atual governo de Israel, democraticamente eleito pela maioria dos cidadãos desse país, a inverter as posições, transformando-se em algoz expulsivo de um outro povo, os palestinos, com quem, durante séculos, os israelitas compartilharam o mesmo território. Mais espantoso ainda, diante do que está ocorrendo em Gaza, é o silêncio sepulcral da imensa maioria dos membros da diáspora judaica espalhada mundo a fora. À exceção de uns poucos corajosos que não hesitam em botar a boca no trombone para protestar contra Netanyhau e seu governo, todo o resto prefere não se manifestar. Quem cala, consente. Mas o silêncio, neste caso, não é neutralidade. É aliança com o opressor.
Os indicadores atuais são claros: Cerca de 55 mil mortos – em sua maioria mulheres, idosos e crianças; 126 mil feridos; 2 milhões de pessoas forçadas a fugir de suas casas (mais de 80% da população; somente entre março e início de junho de 2025, cerca de 640 mil pessoas foram deslocadas novamente, muitas em áreas militarizadas ou sob ordens de evacuação); a quase totalidade das escolas e estruturas hospitalares destruída; bairros inteiros reduzidos a escombros. Os números, por si só, impressionam. Mas é a lógica por trás dessa destruição sistemática que exige atenção: trata-se de esvaziar Gaza e seus habitantes palestinos, não apenas de desarticular o Hamas.
Um plano antigo, em nova escala
A chamada “limpeza étnica” dos palestinos não é um fenômeno novo. Desde a fundação do Estado de Israel, em 1948, os palestinos vivenciam sucessivas ondas de expulsão, desapropriação e confinamento. A Nakba (“catástrofe”, em árabe) marcou o início dessa tragédia histórica: mais de 750 mil palestinos foram expulsos ou fugiram de suas terras durante a guerra de independência de Israel. A ocupação da Cisjordânia e de Gaza após 1967, a expansão de assentamentos ilegais e o bloqueio total de Gaza desde 2007 são capítulos de uma mesma narrativa: a substituição de um povo por outro.
A diferença agora está na escala e na transparência da violência. O mundo inteiro assiste, em tempo real, à tentativa de destruição física e simbólica de uma população inteira, sob o pretexto da “guerra contra o terrorismo”.
O atual governo israelense — o mais à direita de sua história — tem sido explícito em seus objetivos. Ministros e parlamentares defendem publicamente a “remoção” dos palestinos de Gaza, sugerem transferi-los para o deserto do Sinai, o Egito, a Jordânia ou qualquer outro lugar desde que fora de Israel e da Palestina, e falam em “recolonizar” a região com assentamentos judaicos. Quando o discurso oficial legitima a desumanização, a prática da limpeza étnica deixa de ser subentendida: torna-se política de Estado.
Genocídio ou não?
A discussão sobre se o que ocorre em Gaza pode ser qualificado como genocídio ainda divide juristas e analistas. No entanto, a limpeza étnica - definida como o deslocamento forçado de um grupo étnico, com ou sem extermínio - encontra respaldo nos fatos. Especialistas da ONU, relatores independentes e organizações como a Human Rights Watch e a Anistia Internacional já identificaram evidências claras de crimes contra a humanidade, inclusive o uso de fome como arma de guerra. Em fevereiro de 2024, a Corte Internacional de Justiça reconheceu que há base plausível para acusar Israel de genocídio, em ação movida pela África do Sul. A decisão final pode levar anos, mas o alerta foi lançado: o que está acontecendo em Gaza não é simplesmente uma guerra. É um projeto de erradicação nacional.
O apoio cego de potências ocidentais, especialmente dos Estados Unidos e da União Europeia, à narrativa israelense revela outra face da tragédia: a cumplicidade. Ao justificar a destruição em massa como autodefesa, e ao bloquear resoluções de cessar-fogo na ONU, esses países contribuem para a manutenção de um sistema de apartheid e ocupação que já dura décadas.
Enquanto isso, civis palestinos - crianças, idosos, famílias inteiras - são soterrados sob os escombros de suas casas, sem acesso a água, comida ou refúgio. Gaza, hoje, é o epicentro de uma catástrofe humanitária fabricada.
A história julgará
A limpeza étnica não se define apenas pelo número de mortos, mas pelo desaparecimento de um povo de sua terra, de sua cultura e de sua história. Gaza está sendo apagada - física e simbolicamente - diante de nossos olhos. Se não houver pressão internacional efetiva, sanções concretas e responsabilização judicial, estaremos testemunhando - e tolerando - uma das maiores tragédias morais do nosso tempo.
Importante análise do jornal Financial Times (2 jun. 2025) mostra que 80 % do território foi designado como zona militar ou alvo de evacuação, enquanto o governo israelense planeja concentrar a população em uma faixa pobre junto ao Egito, sem água, eletricidade ou hospitais - um evidente contexto de expulsão sistemática. Sem qualquer pudor, Bezalel Smotrich, ministro das Finanças de extrema direita de Israel, declarou que “Gaza será totalmente destruída” e que os palestinos serão “concentrados no sul”.
Colapso humanitário e acesso negado
Apenas 38 % dos centros de saúde da Faixa estão funcionando parcialmente; mais de 2 700 crianças com menos de 5 anos foram diagnosticadas com desnutrição aguda em maio último. Ao mesmo tempo, relatórios do HRW (Human Rights Watch), o MSF (Médecins Sans Frontières) e outras organizações falam em uso de ordens de deslocamento como ferramenta psicológica e física - parte de uma campanha deliberada de limpeza étnica. Essas duas organizações humanitárias afirmam que os deslocamentos em massa, restrição deliberada à assistência, destruição de infraestrutura civil, e ordens de evacuação sem retorno, configuram crime contra a humanidade e limpeza étnica. A ONU, através do seu Comitê de Dire4itos Palestinos caracterizou isso como “não evacuação, mas deslocamento forçado e limpeza étnica”.
Todas as evidências — morte em massa de civis (com alta proporção de mulheres e crianças), destruição sistemática de infraestrutura, deslocamentos forçados e declarações explícitas de autoridades - apontam para um padrão de limpeza étnica em tempo real. O deslocamento prolongado e as condições de vida insustentáveis nas áreas isoladas reforçam a suspeita de intenções deliberadas de expulsão e erradicação. A comunidade internacional, por meio da ONU, ICJ, HRW e MSF, reconhece os ingredientes dessa operação como passíveis de crimes contra a humanidade, afirmando que a situação exige observância rigorosa do direito humanitário internacional e pressão global para cessar imediatamente medidas que erodam o direito dos palestinos à permanência em sua terra. Dizer isso não significa defender o Hamas ou negar os crimes cometidos por ele. Significa reconhecer que a população civil palestina está sendo vítima de uma violência extrema que extrapola os limites do direito humanitário internacional.
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