Falta alguém no julgamento do século
Pastores transformaram os púlpitos dos templos aparentemente religiosos e as tribunas do Congresso em armas de guerra ideológica
No julgamento de Jair Bolsonaro por tentativa de golpe, organização criminosa e ataque ao Estado Democrático de Direito há uma ausência clamorosa. A dos pastores que transformaram os púlpitos dos templos aparentemente religiosos e as tribunas do Congresso em armas de guerra ideológica da extrema direita.
Na década de 1940, o jornalista David Nasser cunhou a expressão “Falta alguém em Nuremberg” para denunciar a impunidade de Filinto Müller, chefe da polícia política do Estado Novo — um Brilhante Ustra da época, herói dos Bolsonaros. Filinto Müller jamais foi responsabilizado por seus crimes.
A frase de Nasser serve hoje para outro contexto. Falta alguém no julgamento de Jair Bolsonaro, seus generais e militares de alta patente, ministros e assessores, que começou no dia 2 de setembro. Neste julgamento histórico faltam os pastores bolsonaristas.
Esses líderes políticos/religiosos foram cúmplices ativos do projeto golpista, usando a fé como escudo e instrumento de manipulação. Não foram meros coadjuvantes, mas protagonistas da ofensiva golpista da extrema direita contra a democracia.
O púlpito como palanque político ideológico
Nomes como Marcos Feliciano e Magno Malta, ambos parlamentares, transformaram a Bíblia em panfleto eleitoral. Dois exemplos de pastores evangélicos atuando como operadores da extrema-direita. Mas, é Silas Malafaia quem simboliza o pior dessa fusão tóxica entre religião e política.
Até pouco tempo atrás, Malafaia alugava carros de som e financiava manifestações golpistas. Atacava de forma virulenta o ministro Alexandre de Moraes e o governo do presidente Lula e seu vice Geraldo Alckmin, fomentando o ódio contra o Supremo Tribunal Federal, contra o judiciário brasileiro, contra a democracia, contra o Estado Democrático de Direito. Seus discursos e sermões não eram apenas religiosos. Eram, sim, convocações explícitas para a desobediência e para o enfrentamento às instituições democráticas.
A estratégia de Malafaia
A escalada não parou com a saída de seu amigo Jair do governo, derrotado nas eleições de 2022. Como mostrou a jornalista Carla Castanho em artigo publicado no GGN —“Entre palavrões e bênçãos: a estratégia de Malafaia”—, o pastor voltou a atacar a Polícia Federal e o Supremo Tribunal Federal em vídeo divulgado nas redes sociais.
O artigo reproduz trechos do livro do professor Lucas Nascimento, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), — “O veneno da língua: o desafio evangélico de falar a verdade sem ferir”. o autor afirma que a retórica de Malafaia “não é mero destempero, mas parte de uma engrenagem com objetivo político claro”. “Malafaia funciona como apologeta do bolsonarismo. Ele dá forma religiosa a um discurso político de intimidação. É o pastor que ameaça, grita e, ao mesmo tempo, pede bênção. Essa contradição é calculada.”
A hiper normalização da mídia
Essa mesma leitura é reforçada pelo jornalista e professor de Semiótica Wilson Ferreira, que interpreta a retórica malafaiana como exemplo do que ele chama de “hiper normalização da mídia”.
Trata-se do processo em que uma linguagem violenta — “de miliciano”, como Ferreira define — vai sendo naturalizada como se fosse apenas mais um exagero retórico. Mas não é. É, sim, uma tática corrosiva, destinada a deslegitimar e paralisar a esfera pública. Ferreira destaca ainda que a retórica bélica de Malafaia não remete ao Cristo do Novo Testamento, mas a uma versão guerreira, militante, que glorifica Israel e transforma o evangelho em pregação da violência. É a linguagem do ataque, da contravenção e do milicianismo, muito distante da mensagem cristã original.
Cúmplices no tribunal
Enquanto Bolsonaro enfrenta a Justiça, seus principais aliados, cúmplices do campo religioso-ideológico, permaneciam intocados. Pastores que atuam como militantes da extrema direita e cabos eleitorais, disseminando mentiras e calúnias em forma de oração, fake news de todos os tipos, e que sempre agiram politicamente, começam a ser chamados a responder por sua participação no ataque sistemático e organizado à ordem democrática. Ataques que começaram já na campanha presidencial de 2018, percorreram todo o governo Jair Bolsonaro, e sobrevivem mesmo após o ápice da tentativa do golpe continuado do 8 de janeiro de 2023.
Nunca é demais lembrar que, se o golpe de 8 de janeiro desse certo, começaria com o assassinato do presidente Lula, do vice Alkmin — ambos eleitos democraticamente e empossados sete dias antes — e do ministro do STF Alexandre de Moraes. E, certamente, nesse exato momento de 2025 — em vez de estarmos assistindo ao julgamento do século — o Brasil estaria novamente vivendo sob as terríveis consequências de uma ditadura militar sanguinária, que torturou e assassinou centenas de jovens, a maioria na casa dos 20 anos de idade, como fez a ditadura que começou em 31 de março de 1964 e durou 21 anos. Em matéria da Folhapress, publicada nesta quinta-feira 4, a jornalista Anna Virgínia Ballousier, informa que "o pastor Silas Malafaia financiou atos pró-Jair Bolsonaro (PL), gravou mais de 50 vídeos contra Alexandre de Moraes e manteve conversas privadas com o ex-presidente em que o aconselha a produzir conteúdo contra o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), além de xingar seu filho Eduardo Bolsonaro (PL).
Em entrevista à Folhapres, na terça-feira 2, primeiro dia do julgamento de Bolsonaro no STF, o pastor chama de “covardes” pastores que silenciam sobre o confronto com o Judiciário. Também covardia seria uma prisão sua. Ele fala ainda sobre palavrões que usa em áudios para Bolsonaro, diz que não é um “Superman evangélico” e rejeita a hipótese de concorrer a presidente, ideia que circula nos bastidores do poder evangélico. Estará à frente, neste domingo, 7 de Setembro, de novo ato bolsonarista na avenida Paulista. “Não tenho medo de ser preso por Moraes,” disse Malafaia.
O desafio da democracia diante da fé manipulada
O silêncio da Justiça em relação a Malafaia representava até aqui uma lacuna grave. Agora, tudo começa a mudar. Na última semana de agosto, virou parte do inquérito do STF, junto com o amigo Jair Bolsonaro e o filho Eduardo, o deputado que fugiu para os EUA com a missão, financiada pelo pai, de lutar contra a soberania nacional e a economia brasileira. Malafaia teve passaporte, celular e “cadernos de esboços bíblicos” apreendidos em operação da Polícia Federal.
Não se trata de criminalizar a fé, mas de responsabilizar aqueles—a exemplo do pastor Silas Malafaia— que usam a fé como arma política, colocando milhões de fiéis a serviço do projeto da extrema direita global. O aviso do Justiça brasileira — da PGR, da Polícia Federal, do STF — é claro: o Brasil quer virar a página do bolsonarismo e já começou a enfrentar esse capítulo criminoso e punir os pastores que traíram sua missão espiritual, se é que algum dia tiveram, para se tornar soldados da cruzada fascista da extrema-direita.
Assim como faltou alguém em Nuremberg, segundo David Nasser, faltava alguém no histórico julgamento de setembro de 2025 em Brasília. Não falta mais.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.