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Gustavo Tapioca

Jornalista formado pela Universidade Federal da Bahia e MA pela Universidade de Wisconsin-Madison. Ex-diretor de redação do Jornal da Bahia, foi assessor de Comunicação Social da Telebrás, consultor em Comunicação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do (IICA/OEA). Autor de "Meninos do Rio Vermelho", publicado pela Fundação Casa de Jorge Amado.

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O julgamento histórico da primeira vez

A sessão do Supremo Tribunal Federal entra para a história como divisor de águas

Ex-presidente Jair Bolsonaro em casa, em Brasília, durante prisão domiciliar determinada pelo STF 14/08/2025 (Foto: Reuters)

O julgamento que começa nesta terça-feira, 2 de setembro, tem características únicas na história brasileira. Pela primeira vez, um ex-presidente da República — Jair Bolsonaro — será julgado pelo Supremo Tribunal Federal sob acusações de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio público tombado.

Pela primeira vez, generais de quatro estrelas e outros oficiais de alta patente estarão no banco dos réus de um tribunal civil — e não do Supremo Tribunal Militar, como sempre ocorreu no passado.

Pela primeira vez, desde 1937, os Estados Unidos foram decisivos para que um golpe de Estado não prosperasse no Brasil. Se em quase todos os movimentos golpistas anteriores o apoio de Washington foi determinante, em 2023 a recusa explícita do governo Joe Biden foi um dos fatores centrais para o fracasso da intentona.

O avesso da história

O Brasil já assistiu a militares julgando civis em tribunais de exceção, especialmente após o golpe de 1964. O que nunca se viu, até hoje, é a cena inversa: generais fardados e um ex-presidente no banco dos réus de um tribunal civil, respondendo por crimes contra a democracia. O jornalista Josias de Souza, em artigo publicado no UOL, destacou a “originalidade da cena”. De fato, a historiografia nacional costuma registrar os militares como protagonistas de rupturas institucionais, não como acusados em julgamentos públicos. Esse giro é um marco, um freio na tradição golpista brasileira.

A longa tradição de quarteladas

A história do Brasil é marcada por golpes e tentativas de golpe em que as Forças Armadas desempenharam papel central. Muitas vezes com a colaboração explícita ou tácita dos Estados Unidos, que sempre viram na instabilidade brasileira uma oportunidade de reafirmar sua influência geopolítica no continente.

Foi assim, em 1937, no Golpe do Estado Novo, instaurado com o falso “Plano Cohen”, que contou com benevolência diplomática de Washington. Tio Sam preferia um aliado forte em tempos de turbulência pré-guerra.

Foi assim em 1945 na Deposição de Vargas, quando a pressão dos EUA foi decisiva para a redemocratização. Tio Sam não aceitava aliança com ditaduras após a vitória contra o nazifascismo.

Foi assim em 1964, o Golpe militar contra João Goulart, o episódio mais emblemático de ingerência estrangeira. Washington articulou e financiou o movimento, preparou a Operação Brother Sam, enviando navios de guerra e combustível para garantir a vitória dos golpistas.

Foi assim em 1968 com o AI-5, o golpe dentro do golpe -- com o respaldo tácito dos EUA, que ofereciam proteção diplomática ao regime diante das denúncias de tortura e violações de direitos humanos.

Em 2023, no 8 de janeiro, a história foi outra. A extrema-direita norte-americana ligada a Donald Trump ofereceu apoio político e inspiração ideológica, mas o governo Joe Biden agiu de modo contrário. Enviou dois mensageiros de alto escalão a Brasília para deixar claro aos militares golpistas que os EUA não reconheceriam um governo resultante de ruptura institucional.

Entre os nomes citados pela imprensa estavam Brian A. Nichols, secretário adjunto para Assuntos do Hemisfério Ocidental, e Elizabeth Bagley, embaixadora dos EUA no Brasil a partir de 2023. Embora noticiado, não houve confirmação oficial de que tenham sido eles os portadores da mensagem. Essa recusa explícita da Casa Branca foi uma das principais razões para o fracasso da intentona golpista. Se em 1964 os EUA apoiaram a derrubada de um governo legítimo, em 2023 vetaram a aventura autoritária.

Os crimes em julgamento

O núcleo que será julgado a partir de 2 de setembro enfrenta quatro acusações centrais: Tetativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; Oganização criminosa; Dano qualificado; e Deterioração de patrimônio público tombado – referente à depredação de obras de arte e acervos históricos na invasão do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribandal Federal. Essas acusações configuram um conjunto inédito: um ex-presidente e generais respondendo juntos, sob acusação de crimes que ferem diretamente a soberania popular e o Estado Democrático de Direito.

O julgamento e seu simbolismo

A sessão do Supremo Tribunal Federal entra para a história como divisor de águas. Pela primeira vez, aqueles que tentaram destruir a democracia não apenas fracassaram, mas foram também levados à barra da Justiça.

Se em 1964 os tanques venceram e a Constituição foi rasgada, agora o que se vê é o inverso.A Constituição permanece de pé, e os golpistas se tornaram réus. Esse julgamento pode se tornar um marco simbólico tão relevante quanto a Proclamação da República ou o golpe de 1964 — mas pela primeira vez em favor da democracia.

O Brasil do futuro será escrito a partir deste tribunal

O julgamento dos golpistas de 8 de janeiro não é apenas um rito judicial. É uma lição histórica: o país não aceita mais quarteladas.

Ao colocar Bolsonaro e seus generais diante de juízes civis, o Brasil envia ao mundo a mensagem de que sua democracia amadureceu o suficiente para processar, punir e virar a página dos golpes.

A imagem de militares de quatro estrelas no banco dos réus, lado a lado com um ex-presidente da República, corrige o curso da história: inaugura um novo capítulo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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