Escolhas eleitorais e dissonância cognitiva
Dissonância entre discurso e voto mantém baixa qualidade da política brasileira
Dificilmente duas pessoas vão concordar sobre todo e qualquer assunto, mas podem concordar sobre alguns valores que entendam como relevantes. Desses valores podem ser deduzidas escolhas. Nossa sociedade, tão dividida, está atormentada por fatos recentes de profundo alcance para a vida institucional do país. Esses fatos permitem avaliar a coerência dos principais atores políticos com a retórica que proclamam. Como vivemos um momento de dissonância cognitiva ampliada do eleitorado, talvez estejamos diante de uma oportunidade. Explico-me. Alguns temas têm comandado uma larga rejeição expressa nas pesquisas realizadas por Datafolha, Genial Quaest e Ipesp: tarifaço de Trump e sua tentativa de interferir no STF (57% são contra), emendas parlamentares (82% acham que os recursos são desviados), invasões golpistas às sedes dos Poderes em 08/01/23 (86% são contra), anistia a Jair Bolsonaro (61% rejeitam), prisão do ex-presidente Bolsonaro (48% a favor e 46% contra), atuação do Congresso (78% acham que age mais em benefício próprio) e o motim na Câmara e no Senado, ainda sem pesquisas. No plano internacional, a invasão da Ucrânia pela Rússia, o governo Trump e sua política externa (61% de rejeição), o atentado do Hamas em 07/10 e o massacre dos palestinos pelo governo Netanyahu em Gaza são alguns fatos marcantes. Mas, contraditoriamente, pesquisas de intenção eleitoral indicam largo apoio a forças políticas contrárias às opiniões acima reveladas.
Para superar a dissonância cognitiva entre os valores proclamados e suas escolhas eleitorais, o eleitor bem que poderia abrir um arquivo e nele registrar posicionamentos de candidatos que estarão no próximo cardápio eleitoral, sobre esses e outros temas que tenham conexão com os seus valores. Se muitos assim agissem, poderiam superar a contradição entre o que dizem nas pesquisas e nas redes e os votos que depositam nas urnas. E a qualidade da nossa representação política poderia melhorar.
Existem alguns mitos do senso comum quando se trata de escolhas eleitorais. Entre eles: “o importante é a competência do candidato”; “as boas escolhas devem desconsiderar as ideologias”; “voto no candidato da minha religião”; “voto em quem for a favor da família”; “voto em quem for honesto”; “voto em quem me der alguma coisa”. Ainda que alguns desses fatores sejam considerados na hora da escolha, por que não os compatibilizar com a prática real dos candidatos e as posições que tenham assumido em relação aos valores do eleitor? A correspondência entre prática e valores pode, inclusive, ir além da tradicional clivagem esquerda/direita. Por exemplo, se alguém valoriza a democracia e quer ser consistente com o seu voto, pode não querer repetir o voto em um parlamentar que participou dos atos golpistas de 8/1 ou do motim que impediu o funcionamento do Congresso na semana passada. Pode-se continuar votando nos seguintes parlamentares cujos nomes foram encaminhados à Corregedoria-Geral da Câmara: Zé Trovão (PL-SC), Marcel Van Hattem (Novo-RS), Marcos Pollon (PL-MS), Julia Zanatta (PL-SC), Paulo Bilynskyj (PL-SP), Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), Nikolas Ferreira (PL-MG), Zucco (PL-RS), Caroline de Toni (PL-SC), Carlos Jordy (PL-RJ), Bia Kicis (PL-DF), Domingos Sávio (PL-MG), Marco Feliciano (PL-SP) e Allan Garcês (PP-MA). Mas não se pode fundamentar esse voto em convicções democráticas. Como disse o Estadão, no seu editorial de 8/8/25: “A punição dos que sequestraram o Congresso a título de livrar a cara de Jair Bolsonaro tem de ser exemplar. Não se pode premiar com a leniência quem atenta contra o funcionamento de um Poder”. Pode-se votar em quem aprovou ou “passou pano” na agressão americana à soberania nacional, mas fica difícil continuar a se dizer patriota — talvez da pátria alheia. Pode-se votar em quem apoia o governo israelense que massacra civis e usa a fome como arma de guerra, mas fica difícil continuar a proclamar valores humanistas. Atualmente, existem no STF ao menos 35 apurações envolvendo parlamentares, a maioria por desvios nas emendas. Claro que eles só podem ser considerados culpados ao final do processo. Pode-se votar nesses parlamentares, mas dificilmente mantendo convicções contrárias à corrupção.
Sabe-se que as disfunções da nossa representação política são causadas por muitos fatores. O atual sistema eleitoral e partidário reproduz o poder de oligarquias partidárias porque elas organizam o cardápio de candidaturas e a distribuição dos recursos dos fundos públicos, agora acrescidos pelas emendas orçamentárias. O clientelismo, a manipulação de algumas organizações religiosas, a corrupção e o uso das redes sociais com milícias disseminadoras de ódio e mentiras são fatores que explicam a baixa qualidade do Congresso Nacional, que hoje é rejeitado por 78% da população, a qual considera que os congressistas atuam mais em prol de seus interesses. Mas, se os eleitores prestassem mais atenção aos posicionamentos de seus candidatos, seria atenuada a dissonância cognitiva entre votos e valores.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.