Sara York avatar

Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

144 artigos

HOME > blog

"Entre impostoras e super sábios": o abismo entre a Síndrome do Impostor e o Efeito Dunning-Kruger

'Quando a Eslováquia altera sua constituição para reafirmar o binarismo de sexo e gênero, evidencia-se como o Estado tenta apagar a pluralidade de identidades'

"Entre impostoras e super sábios": o abismo entre a Síndrome do Impostor e o Efeito Dunning-Kruger (Foto: Reuters)

Em um mundo onde mulheres altamente qualificadas questionam a própria competência enquanto homens pouco preparados se autoproclamam especialistas, o contraste entre a Síndrome do Impostor e o Efeito Dunning-Kruger expõe como o gênero atravessa nossas percepções de saber e poder. Essa disparidade, visível da sala de aula ao conselho de administração, revela não apenas distorções individuais, mas estruturas sociais que alimentam a dúvida feminina e a confiança masculina - e que moldam quem é ouvido, acreditado e promovido.

eslovaquia
Eslováquia. Foto: Reprodução (YT/EuroNews)

Atravessar a jornada de um doutorado em Educação é, ao mesmo tempo, mergulhar no rigor da pesquisa e tornar-se testemunha dos fenômenos humanos que emergem no cotidiano acadêmico e social. Como educadora e observadora das tramas contemporâneas, tenho percebido que o saber - ou a ideia que temos dele - é menos um acúmulo de informações e mais um espelho das nossas fragilidades. Nesse espelho, duas distorções se destacam: a Síndrome do Impostor e o Efeito Dunning-Kruger.

De um lado, encontro colegas brilhantes que, mesmo diante de currículos impecáveis, prêmios e reconhecimento, carregam a convicção íntima de que "enganaram" o mundo. É a Síndrome do Impostor, esse sentimento de fraude que faz a pessoa minimizar suas conquistas e atribuir o sucesso à sorte. Vejo doutorandas que, mesmo após defesas primorosas, saem da banca com a pergunta sufocante: será que mereci?

Do outro lado, observo um fenômeno oposto - e, por vezes, mais perigoso: o Efeito Dunning-Kruger. Aqui, indivíduos com pouca experiência superestimam radicalmente suas capacidades. São vozes que falam com aparente autoridade sobre temas complexos, ignorando a vastidão do que não sabem. É o "pico da ignorância", como alguns chamam, quando a autoconfiança é inversamente proporcional ao conhecimento.

Esses dois polos - a modéstia paralisante e a arrogância destemida - revelam algo em comum: falhas de metacognição, a capacidade de pensar sobre o próprio pensamento. O impostor sofre por ver apenas a excelência alheia e o vazio de si; o prisioneiro do Dunning-Kruger, por não reconhecer os abismos que ainda não explorou. Um não se percebe suficiente; o outro não percebe o quanto ainda lhe falta.

Curiosamente, vejo que muitos de nós transitamos por ambos os estados ao longo da vida. No início de uma pesquisa, podemos sentir a confiança ingênua de quem ignora a complexidade do campo. Com o aprofundamento, vem a consciência do desconhecimento e, com ela, a possibilidade de cair na Síndrome do Impostor. No meu caso, percebi que meu conhecimento alcançado ao longo da vida na pesquisa era autêntico quando percebi que minhas ideias eram usadas por pessoas que eu validava e ate compartilhava informações. O caminho da maturidade acadêmica, acredito, está em atravessar essas fases sem estacionar em nenhuma.

Como doutora em educação e mulher trans, aprendi que o saber não é linear nem neutro. Ele é situado, como lembra Donna Haraway, e atravessado por relações de poder, como ensinou Michel Foucault. Reconhecer a própria limitação é gesto de humildade; reconhecer a própria competência, um ato de justiça consigo. Entre a arrogância de achar que se sabe tudo e a dúvida que impede de ver o próprio valor, o conhecimento verdadeiro floresce na capacidade de se rever.

Mas há um ponto que a academia e as políticas públicas ainda relutam em reconhecer: os saberes dos sujeitos historicamente não credibilizados. Pessoas trans, negras, indígenas e tantas outras populações marginalizadas carregam epistemologias forjadas na experiência de exclusão e resistência, mas que raramente são legitimadas como conhecimento. São narrativas que não cabem nos cânones tradicionais, ainda que constituam práticas de sobrevivência e invenção social. Quando um país como a Eslováquia altera sua constituição para reafirmar o binarismo de sexo e gênero, evidencia-se como o poder estatal pode tentar apagar a pluralidade dos corpos e identidades, transformando em lei a recusa de outras formas de existência. Essa violência institucional reforça o que chamo de "conhecimento subalterno": saberes que persistem mesmo quando o Estado, a ciência ou a história oficial insistem em silenciá-los. Integrar essas vozes ao debate não é um gesto de benevolência, mas um imperativo epistemológico - porque a verdade do mundo nunca foi exclusivamente escrita pelos vencedores, e sim continuamente reescrita por quem se recusa a desaparecer.

Talvez a tarefa mais urgente da educação - e da vida - seja essa: formar sujeitos que saibam duvidar de si mesmos na medida certa. Que sejam capazes de dizer "não sei" sem medo, mas também de afirmar "eu sei" sem pedir desculpas. O mundo contemporâneo, saturado de opiniões instantâneas e verdades absolutas, precisa mais de aprendizes permanentes do que de especialistas autoproclamados. E é nesse equilíbrio, entre a consciência do limite e a coragem da afirmação, que a educação se reinventa - e que a humanidade pode, quem sabe, aprender a aprender - nossa máxima na Educação Brasileira.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

Artigos Relacionados

Carregando anúncios...