Desde 1792, Robespierre enquadra o STF
Parece que o STF não compreende que julgar Bolsonaro não é apenas uma questão jurídica, mas existencial para a República
Em 3 de dezembro de 1792, diante da Convenção Nacional francesa, Maximilien Robespierre pronunciou um dos discursos mais lúcidos sobre a natureza do poder e da justiça revolucionária. Ao argumentar contra o julgamento de Luís XVI, Robespierre revelou uma lógica implacável que deveria ecoar até hoje no Supremo Tribunal Federal brasileiro, enquanto se discute a inocência ou não dos golpistas do 8 de janeiro.
A Lógica Inexorável de Robespierre
Robespierre foi categórico: "Luís foi deposto por seus crimes. Consequentemente, Luís não pode ser julgado. Ou ele já está condenado, ou então a República não está absolvida. Sugerir que Luís XVI seja julgado de qualquer forma é regredir em direção ao despotismo real e constitucional". A lógica era cristalina: "Se Luís pode ainda ser levado a julgamento, ele pode ainda ser absolvido. Na verdade, ele é presumido inocente até que seja considerado culpado. Se Luís é absolvido, o que então acontece com a Revolução?"
O argumento de Robespierre estabelecia uma premissa fundamental: se um inimigo da República pode ser julgado, então ele pode ser inocente; se ele é inocente, então a própria República é criminosa e o povo que a estabeleceu é criminoso. Não há meio-termo no confronto entre democracia e autocracia.
O STF e a Lógica Democrática
O Supremo Tribunal Federal brasileiro, ao aceitar por unanimidade tornar Jair Bolsonaro réu pelos crimes de golpe de Estado e tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito, aplicou inconscientemente a lógica robespierriana. Bolsonaro e seus aliados são acusados de "desacreditar o sistema eleitoral, incitar ataques a instituições democráticas e articular medidas de exceção, com o objetivo de impedir a posse do presidente eleito".
Se Bolsonaro é inocente dessas acusações, então a democracia brasileira de 2022 foi criminosa, as eleições foram fraudulentas, e o STF é um poder usurpador. Se o golpe era legítimo, então a resistência democrática foi ilegítima. Não há posição intermediária: ou Bolsonaro tentou destruir a democracia, ou a democracia brasileira não existe.
Parece que o STF não compreende que julgar Bolsonaro não é apenas uma questão jurídica, mas existencial para a República. O relator Alexandre de Moraes enfatizou que "o Brasil chega a 2025 com uma democracia forte, instituições independentes" e que o julgamento demonstra que "as balizas definidas pela Constituição Federal de 1988 se revelaram acertadas e impediram inúmeros retrocessos".
A Capitulação Norte-Americana
Nos Estados Unidos, o promotor especial Jack Smith abandonou todos os casos criminais federais contra Donald Trump após sua vitória eleitoral, seguindo "a política de longa data do Departamento de Justiça contra processar um presidente em exercício". Smith reconheceu que "as evidências contra Trump teriam levado à sua condenação em julgamento" se não fosse por sua vitória eleitoral.
A diferença é gritante: enquanto o Brasil processa seu ex-presidente golpista, os EUA arquivam os casos contra o seu. Trump compreendeu perfeitamente que "sua melhor esperança de evitar julgamentos era vencer a presidência novamente", transformando a democracia americana em refém de suas próprias regras.
Aplicando Robespierre ao caso americano: se Trump é inocente das acusações de interferência eleitoral e insurreição, então o 6 de janeiro foi legítimo, as eleições de 2020 foram fraudulentas, e a "justiça democrática" é perseguição política. Mas os Estados Unidos recusam-se a enfrentar essa lógica, preferindo o conforto da impunidade ao rigor da verdade.
O Fascismo em Fase Larval: A Lição de Weimar (1923-1933)
A ascensão nazista demonstra como o fascismo opera em sua fase larval dentro das instituições democráticas. Em 1928, o Partido Nazista obteve apenas 2,6% dos votos; em 1932, já era o maior partido da Alemanha com 37,3% dos votos. O crucial: "mais da metade dos deputados do Reichstag eleitos em 1932 já havia se comprometido publicamente a findar a democracia parlamentar" (como faz, didaticamente, o governador de São Paulo hoje).
Hitler nunca obteve maioria absoluta, mas foi nomeado chanceler em 30 de janeiro de 1933 "como resultado de um acordo político" com conservadores que acreditavam poder controlá-lo. Uma vez no poder, Hitler rapidamente estabeleceu controle totalitário: aboliu sindicatos e partidos políticos, aprovou a Lei de Concessão de Plenos Poderes em 23 de março de 1933, e transformou o Reichstag em órgão meramente consultivo.
O crescimento nazista "veio da intimidação dos não-militantes dos partidos de esquerda, que viam os políticos sendo presos, espancados e mortos". Mesmo em 1933, com toda a repressão, os nazistas não conquistaram maioria dos votos, demonstrando que "o fascismo é um embuste" que "aparenta ser democrático mas assim que adquire força suficiente, ele foge ao controle".
A lição é clara: deputados e senadores democraticamente eleitos que têm como atividade fim acabar com as instituições democráticas não podem ser tolerados no legislativo. O fascismo usa a democracia para destruir a democracia. Entre 1923 e 1933, os nazistas utilizaram tribunais, eleições e parlamento para estrangular a República de Weimar. Tolerar o fascismo "larval" é preparar o caminho para sua metamorfose ditatorial.
Democracia Combativa vs. Democracia Suicida
O Brasil de 2025 ecoa a França de 1792: uma república jovem que compreende que não pode coexistir com seus coveiros. Pela primeira vez na história, "um ex-presidente eleito é colocado no banco dos réus por crimes contra a ordem democrática estabelecida com a Constituição de 1988". O STF entende que processar Bolsonaro é defender a própria existência da democracia brasileira?
Os Estados Unidos, ao contrário, escolheram a paralisia da "imparcialidade" diante do golpismo. A presidência de Trump representa "um teste da normas políticas americanas e do Estado de Direito", mas as instituições americanas parecem incapazes de responder efetivamente à ameaça autoritária.
O Brasil luta pela sua democracia; os Estados Unidos já desistiram da sua. Enquanto o STF aplica inconscientemente a lógica robespierriana - compreendendo que entre golpistas e democratas não há meio-termo -, a justiça americana sucumbe ao fatalismo institucional.
Robespierre concluiu seu discurso com uma advertência que ressoa em Brasília: "Luís deve morrer porque a nação deve viver". Traduzindo para nossa época: o golpismo deve ser condenado porque a democracia deve sobreviver. O Supremo Tribunal Federal compreendeu a lição; os tribunais americanos, aparentemente, não.
A história julgará qual sistema soube defender melhor suas instituições democráticas. Por enquanto, é em Brasília, não em Washington, que ecoa a voz implacável de Robespierre: se há julgamento, é porque a República escolheu viver.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.