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Fernando Horta

Fernando Horta é historiador

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Luís Fernando Veríssimo: uma resistência intelectual ao Brasil em transformação

Veríssimo foi resistência ao neoliberalismo, ao empobrecimento da nossa população, à fragmentação cultural que o Brasil viveu durante a dita "globalização"

Luis Fernando Verissimo (Foto: Reprodução (YT))

Luís Fernando Veríssimo nasceu em Porto Alegre, no dia 26 de setembro de 1936, filho do consagrado escritor Érico Veríssimo e de Mafalda Halfen Volpe. Sua trajetória foi marcada por uma formação cosmopolita e multifacetada, que o distinguiria como um dos intelectuais mais lúcidos do país. Entre 1941 e 1945, viveu com a família nos Estados Unidos, onde seu pai lecionava literatura brasileira nas universidades de Berkeley e Oakland. Retornaram novamente aos Estados Unidos entre 1953 e 1956, quando Érico assumiu a direção do Departamento Cultural da União Pan-Americana, em Washington. Durante esse período, Veríssimo cursou o primário em San Francisco e Los Angeles, e concluiu o secundário na Roosevelt High School, em Washington, desenvolvendo sua paixão pelo jazz e aprendendo saxofone. Essa experiência internacional seria fundamental para formar sua visão crítica e sua capacidade de observar o Brasil com o distanciamento necessário para compreender suas contradições mais profundas.

Todos têm dito que Veríssimo foi "resistência ao regime militar", mas permitam-me discordar: Veríssimo foi resistência a todos os processos de transformação silenciosa que o Brasil passou dos anos 80 para cá. Veríssimo foi resistência ao neoliberalismo, ao empobrecimento da nossa população, à fragmentação cultural que o Brasil viveu durante a dita "globalização". Sua obra constituiu uma barreira intelectual contra a recolonização cultural que o país sofre a partir dos anos 90 e também contra as transformações da sociedade gaúcha com a reconfiguração econômica do início dos anos 2000. Enquanto o país se rendia às seduções do mercado e às promessas vazias da modernização excludente, Veríssimo manteve-se como uma voz dissonante, capaz de identificar e denunciar, através do humor, as perdas civilizacionais que essas mudanças representavam.

"As Cobras", uma de suas criações mais emblemáticas, publicada em 1975, funcionaram como uma resistência pedagógica que convidava o leitor a refletir sobre os absurdos da realidade brasileira, antecipando em décadas o que hoje conhecemos como "meme". Veríssimo era minimalista, conciso e transitava pelos sentidos comuns da comunicação com um intertexto claríssimo e fino, tornando acessível a crítica social mais sofisticada. "Ed Mort", personagem criado em 1979, representava uma fina ironia ao empobrecimento do Brasil — especialmente do Rio de Janeiro — no final dos anos 80 e início dos 90. O detetive decadente, sempre às voltas com casos bizarros e uma realidade em decomposição, era o espelho perfeito de um país que assistia ao desmoronamento de suas instituições e ao esgarçamento de seu tecido social, tudo isso narrado com a precisão cirúrgica do humor verissimeniano.

Veríssimo apresentava-se como um "cronista de costumes" que não se contentava em apenas mostrar o mundo — ele queria transformá-lo. Era um homem de esquerda que fazia graça e fazia rir inclusive aqueles a quem criticava, prova de seu talento e de sua generosidade intelectual. A "Família Brasil" constituía a ironia mais refinada da transformação dos tempos da sociedade brasileira pelo neoliberalismo: o núcleo hierárquico da família, suas necessidades de transformação e o choque permanente entre o "novo vs. o conservador". Veríssimo compreendia que não bastava dar visibilidade e criticar as mudanças impostas pelo cenário econômico — era preciso mostrar como elas se refletiam nos detalhes do cotidiano sobre os quais precisávamos urgentemente pensar e refletir.

Sua obra demonstrava uma consciência aguda de que as grandes transformações históricas se manifestam primeiro nos pequenos gestos, nas conversas banais, nas situações aparentemente triviais da vida familiar e social. Por isso, seus textos funcionavam como uma espécie de sismógrafo cultural, captando as vibrações subterrâneas que anunciavam os terremotos por vir. Cada crônica era um convite à reflexão sobre como o Brasil estava mudando, nem sempre para melhor, e sobre como essas mudanças afetavam a vida concreta das pessoas comuns. Veríssimo sabia que o humor era uma forma de resistência, porque nos obrigava a ver o que preferíamos ignorar, a rir do que deveria nos indignar e, assim, a tomar consciência.

A morte de Veríssimo representa uma perda irreparável para a cultura brasileira, comparável apenas ao que significou a morte de Ariano Suassuna para o Nordeste. Veríssimo foi para o Sul do país o que Suassuna foi para sua região: um cronista inquieto, fino, didático e profundo, que sabia se reinventar artística e sociologicamente sem jamais perder sua essência. Seu texto permanece vivo, pulsante, atual, como prova de que a verdadeira literatura transcende seu tempo e continua dialogando com as gerações futuras. E foi mais um gaúcho genial que não foi convidado para a Academia Brasileira de Letras, certamente em excelente companhia de Mario Quintana — outro gigante que a instituição deixou passar. A história, no entanto, já fez sua escolha: Veríssimo está definitivamente no panteão dos grandes escritores brasileiros, independentemente dos selos oficiais que nunca recebeu.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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