G20-1: a lógica da inclusão controlada e o ocaso de uma ordem
O declínio do império se acelera com a era Trump e o desafio global à ordem vigente
Durante todo o século XX, os Estados Unidos construíram e refinaram uma engenhosa estratégia de dominação global baseada na inclusão controlada. O que começou como um triunvirato de vencedores da Segunda Guerra Mundial – EUA, Reino Unido e União Soviética – rapidamente se transformou no Conselho de Segurança das Nações Unidas, expandindo-se para cinco membros permanentes com a inclusão da França e da China. Essa ampliação não foi casual: representou a primeira aplicação sistemática da lógica de que é mais eficaz cooptar potenciais opositores por meio da inclusão em instituições hierárquicas do que enfrentá-los diretamente.
O modelo se repetiu sucessivamente. O G7, inicialmente concebido como um clube exclusivo das principais economias capitalistas, eventualmente se tornou G8 com a inclusão da Rússia pós-soviética e, posteriormente, G20, incorporando economias emergentes como Brasil, Índia e África do Sul. A cada expansão, o discurso era o mesmo: "democratização" e "maior representatividade" das instituições globais. Na prática, tratava-se de uma sofisticada operação de legitimação do poder estabelecido.
A genialidade dessa estratégia residia em sua capacidade de diluir resistências. Países que poderiam questionar frontalmente a ordem hegemônica eram seduzidos pela promessa de "assentos à mesa", mesmo que esses assentos fossem cuidadosamente hierarquizados. O FMI, o Banco Mundial, a OTAN – todas seguiram variações dessa lógica inclusiva que, paradoxalmente, concentrava ainda mais poder nas mãos dos fundadores originais.
O unilateralismo caricato de Trump - Hoje, contudo, essa sofisticada arquitetura de poder enfrenta sua maior ameaça: não de fora, mas de dentro. Donald Trump representa a negação completa da lógica institucional que sustentou a hegemonia americana por décadas. Seu unilateralismo é simultaneamente caricato e autocentrado, uma regressão ao exercício bruto do poder que seus antecessores haviam aprendido a revestir de legitimidade multilateral.
Dos bombardeios ao Irã à imposição unilateral de tarifas comerciais, passando pelas recentes ameaças de taxação de 100% sobre produtos russos, Trump opera com a sutileza de um martelo. Sua diplomacia é a antítese do soft power americano: prefere a chantagem à persuasão, a humilhação à cooptação. É como se o império houvesse decidido dispensar as vestes de civilização que o tornavam palatável ao mundo.
Esse comportamento errático não é meramente uma questão de estilo pessoal. Representa o sintoma de um sistema em declínio, que já não possui os recursos – econômicos, políticos, morais – para manter a fachada de consenso que sustentava sua legitimidade. Quando um hegemon recorre sistematicamente à força bruta, é porque perdeu a capacidade de convencer.
O imperativo da desconexão - Diante dessa realidade, quanto mais cedo os países se descolarem dessa ordem obsoleta e decadente, mais tempo terão para construir institucionalidades robustas adequadas ao século XXI. A persistência em reformar estruturas projetadas para perpetuar hierarquias do pós-guerra é não apenas inútil, mas contraproducente.
Tomemos o exemplo mais emblemático: as campanhas pela ampliação do Conselho de Segurança da ONU. Brasil, Índia, Alemanha e Japão investem enormes recursos diplomáticos pleiteando assentos permanentes em uma instituição cujo poder real reside exclusivamente no direito de veto. Qualquer "novo membro permanente" seria, por definição, um membro de segunda classe, sem poder de veto, cuja inclusão apenas diluiria relativamente o poder dos demais membros não permanentes vis-à-vis os cinco originais.
A melhor resposta ao esvaziamento progressivo do Conselho de Segurança não é mendigar inclusão, mas demonstrar sua irrelevância por meio do afastamento. O Brasil e outros países deveriam considerar o abandono voluntário do Conselho como ato simbólico de ruptura com uma ordem que já não serve a seus interesses. Seria um gesto de dignidade política que sinalizaria aos povos do mundo que existem alternativas à submissão institucionalizada.
G20-1: o simbolismo da ausência - É nesse contexto que emerge a proposta mais audaciosa: uma reunião do G20 sem os Estados Unidos. Não se trata de exclusão punitiva, mas de demonstração prática de que é possível articular soluções globais sem a tutela do hegemon decadente.
O simbolismo seria poderoso. Pela primeira vez na história moderna, as principais economias do mundo – incluindo China, União Europeia, Rússia, Brasil, Índia e outras – se reuniriam para discutir os destinos do planeta sem a presença americana. Seria uma "Cúpula União Europeia-BRICS expandida", necessariamente incluindo representação robusta da África e de outros continentes sistematicamente marginalizados pelas institucionalidades existentes.
O ineditismo histórico do ato ecoaria pelo mundo como um prenúncio de nova era. Não seria uma declaração de guerra, mas uma declaração de independência: a afirmação de que a humanidade pode e deve buscar soluções coletivas sem depender dos caprichos de "reis loucos" que confundem poder com sabedoria.
O Luís XVI da nossa era - Cada regime, em seu ocaso, é caracterizado por lideranças cuja principal característica é a inabilidade de compreender a realidade em que vivem. Donald Trump é o Luís XVI da nossa era: um homem poderoso demais para ser ignorado, mas desconectado demais da realidade para compreender as forças históricas que o cercam.
No dia da Queda da Bastilha, 14 de julho de 1789, o diário pessoal de Luís XVI registrava laconicamente: "nada" – referindo-se à sua jornada de caça malsucedida. Enquanto Paris explodia em revolução e os fundamentos de sua ordem monárquica desmoronavam, o rei estava preocupado com a ausência de animais para abater.
Trump, em seus tuítes e declarações, oferece testemunho similar de desconexão entre percepção pessoal e realidade histórica. Enquanto a ordem internacional que sustentou a hegemonia americana por oito décadas se fragmenta sob o peso de suas próprias contradições, ele permanece obcecado com ratings televisivos, disputas pessoais e a fantasia de que pode resolver complexidades geopolíticas milenares por meio de ultimatos comerciais.
A História, contudo, não espera pela compreensão de seus protagonistas. Move-se com ou sem eles, e frequentemente apesar deles. O G20-1 não seria apenas um evento diplomático, mas um símbolo de que a humanidade está pronta para escrever seu próximo capítulo sem depender da tutela de impérios em declínio ou da sabedoria de reis que confundem poder com realidade.
A Bastilha já está cercada. Resta apenas escolher se queremos ser espectadores ou protagonistas de sua queda.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.