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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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De Tianjin e Beijing a Vladivostok, o trem de alta-velocidade eurasiano continua à toda

A História irá registrar que a primeira semana de setembro de 2025 propeliu a um outro nível o advento do Século Eurasiano

Tianjin (Foto: Zhao Zishuo)

Essa era a expectativa antes dessas três importantíssimas datas entrelaçadas: a cúpula anual da OCX em Tianjin; a parada do Dia da Vitória em Pequim e o Fórum Econômico do Oriente em Vladivostok.

O que acaba de acontecer, entretanto, superou em muito as expectativas, em razão de sua abrangência e escopo.

A OCX, em Tianjin, solidificou o ímpeto chinês rumo à criação de uma verdadeira Governança Global – o que na prática significa enterrar sem a menor cerimônia a “ordem internacional baseada em regras” que, sob o atual governo estadunidense se metastizou em um caos internacional sem regra nenhuma: essencialmente, um ethos que afirma: “vamos explodir o mundo se não formos capazes de controlá-lo”. 

Em Tianjin estiveram presentes não apenas os dez membros plenos da OCX, mas também dois observadores e quinze parceiros  – com uma forte presença do Sudeste Asiático – discutindo os pontos mais sutis a serem observados  para um desenvolvimento pacífico. A foto da semana, se não a do ano ou da década, foi o aperto de mão trilateral entre Putin, Xi e Modi: o retorno em força máxima do RIC (Rússia-Índia-China), termo cunhado por Primakov. Como o Professor Zhang Weiwei da Universidade de Fudan observou em Vladivostok, a OCX vem agora se expandindo firmemente em três plataformas: energia, indústrias limpas e IA. Em paralelo, a Ásia Central, finalmente, está sendo vista como uma “bênção” geográfica, e não como uma “maldição”. 

Imediatamente após Tianjin, a parceria estratégica Rússia-China também subiu de patamar quando o Presidente Putin foi recebido pelo Presidente Xi no Zhongnanhai, a residência oficial do chefe de estado chinês, para uma recapitulação de todo o espectro do estado do planeta.  

No dia seguinte, Pequim resplandecia sob um céu azul no dia da espetacular parada militar celebrando o 80º aniversário da vitória chinesa contra a invasão japonesa e o capítulo asiático do nazifascismo. Era uma confiante superpotência geoeconômica exibindo seu progresso militar.  

Naquele mesmo dia, começou o Fórum Econômico do Oriente em Vladivostok: uma plataforma sem paralelos para a discussão do crescimento dos negócios paneurasianos. 

O que a China propôs, e que foi reiterado em Tianjin, vai muito além do conceito de  wangdao, referindo-se a um poder benigno e esclarecido, diferente de um Hegêmona. Aquilo que seria o lema característico de uma Pax Sínica sob Xi poderia ser resumido em “Façam Comércio, não Guerra” – tendo como alvo o bem-comum, ou “comunidade de   futuro compartilhado”, na terminologia de Pequim.

Os parceiros da OCX, bem como os dos BRICS, têm plena consciência de que a China não pretende substituir a Pax Americana, que sempre tomou como base a “diplomacia” das canhoneiras do – agora corretamente rebatizado -Departamento da Guerra. Por mais ataques histéricos que o Ocidente venha a ter – manipulando o Tibé, Hong Kong, Xinjiang, o Mar do Sul da China, Taiwan – nada irá desviar Pequim de seu caminho civilizatório e inclusivo. 

O nascer de uma nova ordem logística 

O caminho de Tianjin a Vladivostok se desenrolou principalmente em três fronts interconectados: petróleo e gás, corredores de conectividade e desenvolvimento econômico maciço. 

O Ocidente Coletivo simplesmente não consegue se livrar da patologia de perenemente subestimar o Oriente. Por anos a fio, tanto os BRICS quanto a OCX foram ridicularizados em  Washington como conversa fiada sem a menor importância. Mas é o espírito multilateral que permite que venha à luz algo inovador  como o Poder da Sibéria-2.

O gasoduto Poder da Sibéria-2 foi planejado há vários anos, mas foi difícil chegar a um consenso quanto a sua rota. A Gazprom preferia a rota Sibéria Ocidental-Xinjiang, atravessando as montanhas Altai. Os chineses queriam que o duto atravessasse a  Mongólia, chegando diretamente à China Central.  

A rota mongol acabou por prevalecer. A decisão foi tomada há dois anos e, nas últimas semanas, estabeleceu-se o mecanismo de precificação definitivo, respeitando os preços de mercado. Esse maciço divisor de águas geoeconômico significa que o gás da península de Yamal, que abasteceria a Europa  através dos Nord Streams irá abastecer a China.

A fala do Presidente Putin na sessão plenária de Vladivostok colocou especial ênfase na energia e na conectividade. 

Mas em termos de rastrear o diabo nos detalhes, nada poderia superar aqueles que podem ser considerados os dois melhores painéis de todo o fórum.  

Um deles discutiu o desenvolvimento integrado  do Ártico e do Extremo Oriente Russo, com as contribuições especiais de  Vladimir Panov, que é não apenas o principal especialista em Ártico da Rosatom, mas também o vice-presidente da Comissão Estatal do Desenvolvimento do Ártico. Um outro painel fez uma análise realmente profunda, traçando um paralelo entre as origens da Rota do Mar do Norte, há 500 anos – quando o diplomata russo  Dmitry Gerasimov traçou o primeiro esboço dessa Rota e também o primeiro mapa do Oceano Ártico e das costas da Moscóvia – e os desafios tecnológicos do século XXI.

Esse painel trouxe uma notável exposição pelo CEO da Rosatom, Aleksey Likhachev, complementada por especialistas como Sergey Vakhurov, o vice-presidente do Colégio Marítimo da Rússia. Likhachev detalhou a complexa conformação de um corredor ártico transportando principalmente matérias-primas: um corredor de transportes resiliente servindo à totalidade do Nordeste Asiático. 

Trata-se nada menos do nascimento de uma nova ordem logística – pensem na IA – previsões de tempo embasadas mais navios quebra-gelos – trazendo contribuições russas de importância crítica.

Vladivostok se tornará a próxima Hong Kong?

Portanto, como Putin ressaltou em sua apresentação na sessão plenária, o cerne da questão é o Corredor de Transporte Transártico, que talvez seja o principal corredor de conectividade do século XXI.  

Desse modo, não é de surpreender que as discussões de Vladivostok tenham se centrado no papel crucial da energia nuclear e dos navios quebra-gelo nucleares para garantir uma navegação estável ao longo da rota do Mar do Norte, lado a lado com as preocupações ambientais e as dificuldades de assegurar investimentos de grande escala na produção, processamento e construção de infraestrutura de energia.

Todos esses temas se fundiram  com uma oportuna discussão sobre a Parceria da Grande Eurásia – o cerne da política geoeconômica russa – contando com as importantíssimas contribuições de Alexey Overchuk, o vice-presidente do governo russo e o afável Suhail Khan, o secretário-geral adjunto da OCX. 

Um resultado absolutamente importante de todas essas discussões foi o surpreendente realinhamento sendo operado pela Rosatom – que vem, simultaneamente, expandindo seus negócios com China, Índia e Coreia do Sul, ao longo da ultra-estratégica Rota do Mar do Norte. 

Isso, em essência, significa que a Rússia vem avaliando todos os vetores quando se trata da organização em larga escala de sistemas de comboios por 365 dias ao ano para a navegação no Ártico: aqui também, nada menos que uma nova ordem econômica e tecnológica.  

Agora, acrescente-se a tudo isso a animada discussão sobre  como o Sul e o Leste Global estarão liderando a nova economia de crescimento.

O CEO da Sberbank, Herman Gref, por exemplo, revelou que o maior banco russo se tornou o segundo maior em termos de transações em todo o mundo, atrás apenas do JP Morgan.

Wen Wang, da Universidade Renmin, observou que a China vem passando por um fortíssimo processo de desamericanização na educação e na tecnologia, incentivando “seu próprio sistema de conhecimento”.  

Ele prevê um imenso potencial para a cooperação entre Rússia e China – econômica e financeira, ressaltando a necessidade premente de  abrir os mercados financeiros em ambos os lados. É assim que Vladivostok poderia se tornar a próxima  Hong Kong. Diversos dos panelistas do fórum observaram que  Vladivostok tem todas as condições de vir a se tornar um centro estratégico para a integração do Sul Global. 

O Ártico estará no centro de possíveis acordos empresariais entre russos e americanos. Discussões sérias vêm ocorrendo desde março, entre elas o recente encontro Putin-Trump.

Em meio aos colossais desafios logísticos, um grande avanço no Ártico, próximo e interno ao Alasca, pode eventualmente vir a representar para os Estados Unidos uma saída para escapar a uma catástrofe econômica.  Então,  o Ártico – que é de fato dominado pela Rússia – pode, afinal, se converter em uma arena privilegiada para domesticar o Império do Caos. 

A Rússia, afinal, já construiu uma complexa e extensa infraestrutura no Ártico. Portos gigantescos, processamento de GNL, cidades inteiras de trabalhadores e técnicos, a enorme vantagem da frota de quebra-gelos nucleares (nove em operação, e mais dois a caminho). Todos esses avanços são propriedade intelectual russa que pode ser explorada nas negociações com os Estados Unidos.  

No final das contas, estes estonteantes dias recentes solidificaram O Futuro. O Grão-Mestre Lavrov, mais uma vez, apresentou uma versão sucinta – comentando o triplo aperto de mão de Putin, Xi e Modi: “Uma demonstração de que esses três poderes, representando três grandes civilizações, reconhecem que têm interesses em comum em diversas áreas”.

É muito mais que isso: trata-se de um novo mundo sendo criado.  

Tradução de Patricia Zimbres

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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