Conversa com Machado de Assis
“Como ousa me acusar de assassino?”
Eu sei que corro o risco de ser atacado pelos incrédulos e pelos meus detratores, mas fazer o quê? Só quem já estudou (e entendeu) o que está nas entrelinhas da Teoria da Relatividade sabe que não tem nada de mais o título acima, embora entre mim e ele haja um abismo de mais de um século; o que é o tempo, senão matéria fluida, invisível, inodora e que pode (e deve) ser, por isso mesmo, classificada como inexistente?.
Tanto isso é verdade que Machado de Assis, que nunca precisou de Einstein para saber que o tempo é uma invenção, não estranhou a minha visita. Ao contrário, recebeu-me muito bem e até pediu escusas por faltar com um licor de maracujá que fosse; repreendeu-me, deveria ter avisado de véspera.
Apontou-me uma poltrona de veludo azul, ofereceu um charuto e começamos a controvérsia.
“Ao que devo a visita do ilustre cavalheiro”?, ele indagou.
“Sou seu leitor” comecei.
“Parabéns pelo bom gosto. Isto eu sei. Se não fosse, não estaria aqui à minha frente”.
Fui direto ao ponto:
“Por que o senhor matou Flora?”
Notei que ele acusou o golpe.
“Eu não a matei. Ninguém a matou. Não foi um assassinato. Foi a moléstia”.
“Moléstia? Mas que moléstia? O senhor sequer se preocupa com o diagnóstico, não diz que moléstia é”.
“Não digo para deixar à imaginação do leitor. Cabe ao leitor imaginar. Não sirvo o prato pronto”.
“Uma jovem linda, bem educada, prendada, sabia tocar piano, desenhava razoavelmente, mas podia melhorar com o tempo, cobiçada por uma penca de pretendentes, e o senhor a mata!”
“Como ousa acusar-me? Sou escritor, não assassino! Culpe o médico!”
“Não havia bons médicos no Rio de Janeiro? Por que não a internou num hospital?”
“Noto que o senhor ignora o ofício do escritor. Eu não conduzo a pena, a pena é que me conduz”.
“Insisto: morreu de quê? Foi algum vírus? Mas como se não saía de casa praticamente? A menos que saísse às escondidas e o senhor nos omitiu essa preciosa informação”.
“Não sou informante, sou escritor!”
“E a certidão de óbito? Cadê a certidão de óbito?”
“Não é uma reportagem, eu escrevo romances”.
“Desculpas esfarrapadas! Pois o senhor cria um belo personagem, no caso uma bela personagem, acena com um futuro brilhante para ela - nos entretém por mais de 300 páginas - não são três, nem trinta - e de repente a enterra quando estamos apaixonados por ela!”
Machado me olhou com desdém e desapareceu.
Eu voltei às últimas páginas de “Esaú e Jacó”; espero que, em algum momento, como já ocorreu uma vez na história da humanidade, Flora ressuscite.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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