Como se mata a humanidade em nós
Entre palavras, metáforas e silêncios, David Livingstone Smith revela a engrenagem invisível que separa “nós” de “eles” — e decide quem merece viver ou morrer
David Livingstone Smith talvez não seja um nome popular nas conversas de café ou nas manchetes diárias, mas sua obra ecoa com força crescente em um mundo ainda incapaz de se libertar de suas velhas cicatrizes de intolerância, violência e exclusão. Filósofo britânico radicado nos Estados Unidos, professor da Universidade de New England, Smith se especializou em investigar um tema perturbador: a desumanização. Não como metáfora literária, mas como mecanismo social e psicológico que molda guerras, genocídios e preconceitos cotidianos.
Ele escreve no início do século XXI, período em que a humanidade parece oscilar entre avanços civilizatórios — globalização, direitos humanos, interconexão digital — e regressões brutais: campos de refugiados lotados, xenofobia alimentada por algoritmos, populismos que reciclam fantasmas do passado. É nesse terreno contraditório que Smith propõe revisitar a velha questão: o que significa tratar alguém como “menos humano”?
Para ele, a desumanização não é apenas insulto ou ofensa: é uma operação mental, uma engrenagem que converte vizinhos, colegas, povos inteiros em criaturas fora do círculo da moralidade. No livro On Inhumanity (2020), ele demonstra como, ao longo da história, a linguagem de vermes, ratos, baratas e feras sempre foi utilizada para preparar massacres e legitimar atrocidades. O nazismo não surgiu do nada: ele foi precedido de décadas de retórica que retirava do “outro” sua humanidade, transformando-o em praga a ser eliminada.
Mas Smith vai além da lição histórica. Ele insiste que a desumanização não é um episódio restrito a regimes totalitários; é um recurso psicológico latente, pronto para ser ativado em qualquer sociedade. Em sua visão, somos animais simbólicos capazes de inventar mundos de sentido — e igualmente capazes de reduzir nossos semelhantes a coisas, sombras, inimigos imaginários. É como se tivéssemos herdado uma caixa de ferramentas ambígua: nela estão a compaixão e a empatia, mas também a habilidade de negar a humanidade do outro com a mesma naturalidade com que respiramos.
O leitor leigo pode se perguntar: como essa teoria toca o meu cotidiano? A resposta é direta e desconfortável. Cada vez que aceitamos piadas que ridicularizam minorias, cada vez que fechamos os olhos diante do sofrimento de migrantes à deriva, cada vez que reduzimos adversários políticos a caricaturas grotescas, estamos flertando com a lógica da desumanização. Não significa que cometeremos genocídios, mas que participamos de um ambiente cultural que naturaliza a exclusão e prepara o terreno para atrocidades em escala maior.
O mérito de Smith é justamente retirar a desumanização do terreno abstrato e colocá-la no campo da vida comum. Ele não escreve como quem lança maldições, mas como quem acende refletores sobre cantos escuros da alma coletiva. Ao demonstrar que a desumanização é uma “tecnologia social” recorrente, alerta-nos para o perigo de tratarmos como normal o que é, na verdade, o prelúdio da barbárie.
A originalidade de sua proposta está em não separar filosofia e psicologia, política e biologia. Ele busca compreender como mecanismos mentais evolutivos — nossa tendência a dividir o mundo em “nós” e “eles” — se combinam com ideologias, discursos políticos e interesses econômicos. A desumanização, nesse sentido, não é aberração, mas possibilidade sempre presente no repertório humano.
Há, contudo, uma fresta de esperança. Se a desumanização se vale de nossa capacidade de simbolizar, é também por essa mesma via que podemos combatê-la. O antídoto não está em abstrações grandiosas, mas em pequenos gestos que criam sentido diferente: a recusa consciente da linguagem que degrada, o cultivo da memória contra o esquecimento seletivo, o esforço de enxergar humanidade até onde o olhar coletivo insiste em negar. Não se trata de ingenuidade, mas de estratégia ética e política para manter abertas as portas da civilização.
Sua filosofia nos devolve a pergunta essencial: queremos ser os autores de narrativas que expulsam ou de narrativas que acolhem? A resposta não é teórica; é prática, diária, íntima. Na forma como tratamos estranhos, como reagimos a discursos de ódio, como moldamos nossa memória coletiva.
David Livingstone Smith nos lembra que a linha entre civilização e barbárie não está apenas nas páginas da história, mas corre dentro de cada um de nós. Reconhecer isso não nos condena; ao contrário, nos dá a chance rara de escolher, a cada gesto, de que lado queremos estar.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.