Brasil inicia diversificação de reservas internacionais
O movimento sinaliza uma reorientação estratégica em resposta à crescente instabilidade política americana e à fragmentação do sistema financeiro global
O Brasil iniciou um processo de redução gradual de suas aplicações em títulos do Tesouro dos Estados Unidos. O movimento sinaliza uma reorientação estratégica em resposta à crescente instabilidade política americana e à fragmentação do sistema financeiro global. No centro dessa virada está a proposta europeia de criação dos “Eurobônus”, títulos de dívida conjunta da União Europeia, que despontam como alternativa promissora ao domínio absoluto do dólar e dos Treasuries – títulos do Tesouro Americano. Quais as razões, os riscos e as oportunidades envolvidas na decisão brasileira e no novo momento da arquitetura financeira internacional?
O império dos Treasuries sob tensão
Desde o pós-guerra, os títulos do Tesouro dos EUA foram considerados o “porto seguro” do sistema financeiro internacional. Nenhum outro ativo oferecia a combinação de liquidez, segurança jurídica, profundidade de mercado e estabilidade institucional que os Treasuries entregaram por décadas.
Mas essa estabilidade está em xeque. As turbulências políticas recentes nos EUA — como as ameaças do ex-presidente Donald Trump à independência do Federal Reserve (FED), o uso recorrente do teto da dívida como chantagem política e a proliferação de sanções unilaterais, acenderam alertas em bancos centrais de todo o mundo.
Para países como o Brasil, que historicamente mantêm boa parte de suas reservas internacionais em dólar e em ativos americanos, a conjuntura exige reflexão. A aparente solidez do império do dólar já não é mais inquestionável. As incertezas provocadas pelo tarifaço do presidente estadunidense, Donald Trump, podem ter contribuído para uma nova retração nos investimentos em Treasuries. Os investidores internacionais se afugentam à medida que aumenta a volatilidade da economia norte-americana.
Há risco sistêmico no horizonte, e ignorá-lo seria imprudente.
A aposta europeia: o nascimento dos Eurobônus
É nesse cenário de incerteza que ganha força a proposta dos Eurobônus — títulos emitidos de forma conjunta pela União Europeia, com base em um fundo comum de responsabilidade fiscal e lastreados por receitas tributárias europeias.
Idealizado pelos economistas Olivier Blanchard e Ángel Ubide, o projeto visa transformar parte da dívida pública dos países membros (cerca de 25% do PIB da UE, ou € 5 trilhões) em um ativo comum europeu. A emissão seria contínua e estruturada, criando um mercado líquido e profundo de títulos europeus, comparável em escala ao mercado de Treasuries.
A proposta está sendo discutida em círculos de poder em Bruxelas e Frankfurt. O próprio Banco Central Europeu passou a defender, ainda que timidamente, o papel internacional do euro como resposta à hegemonia do dólar e à instrumentalização geopolítica do sistema financeiro americano.
Se concretizados, os Eurobônus não apenas reforçariam a autonomia estratégica da Europa, como criariam um segundo eixo de confiança para investidores institucionais e governos nacionais — uma espécie de pilar alternativo da ordem monetária global.
A escolha do Brasil: sair da sombra do dólar
Diante desse novo horizonte, o governo brasileiro, por meio do Banco Central, iniciou um plano gradual de redução da exposição às reservas em títulos norte-americanos, substituindo parte delas por ativos denominados em euro e, eventualmente, por Eurobônus assim que forem oficialmente lançados.
A decisão não é ideológica. Pode ser fruto de um cálculo estratégico diante de um cenário global em transição:
- A diversificação das reservas é uma forma de reduzir riscos cambiais e políticos;
- O euro, ao lado do ouro e de alguns ativos asiáticos, pode oferecer proteção contra choques americanos;
- Participar desde cedo na consolidação do mercado europeu de dívida comum pode trazer ganhos financeiros e geopolíticos no médio prazo.
Essa reconfiguração pode impulsionar acordos bilaterais e regionais com liquidação em euros, fortalecendo a inserção do Brasil em cadeias globais menos dolarizadas.
Implicações para o Sul Global e o BRICS
O movimento brasileiro poderá inspirar outros países do Sul Global, especialmente parceiros do BRICS, a revisarem suas estratégias de reserva e financiamento externo. China e Rússia já estão na vanguarda desse processo, promovendo swaps cambiais em yuan e evitando o sistema SWIFT.
Se os Eurobônus realmente se consolidarem, teremos um mundo menos concentrado no eixo financeiro Washington–Wall Street. Poderíamos vislumbrar um sistema monetário mais multipolar, com três polos de emissão de ativos de reserva: o dólar, o euro e o yuan.
Para o Brasil, isso significaria maior margem de manobra em negociações internacionais, maior independência cambial e menos exposição a choques externos associados à política doméstica dos EUA.
Desafios e vigilância constante
Ainda assim, a aposta europeia está longe de garantida. A criação de Eurobônus exige forte coesão política interna na União Europeia, superando a resistência de países como Alemanha e Holanda, avessos a qualquer mutualização de dívida. Por mutualização entende-se que A UE como um todo emitiria um único título, com responsabilidade compartilhada. Todos os países seriam corresponsáveis pelo pagamento dessa dívida.
Do lado brasileiro, também será necessário vigilância. A mudança de perfil das reservas deve ser feita com transparência, prudência e acompanhamento técnico. Trata-se de um passo importante, mas que não elimina completamente os riscos do novo sistema.
O Brasil deu o primeiro passo ao olhar além do dólar. Em um mundo onde os riscos estão menos concentrados e as alternativas começam a surgir, agir com autonomia é um sinal de maturidade financeira e política.
Se os Eurobônus se tornarem realidade, e se a Europa conseguir demonstrar coesão institucional, estaremos diante de um dos maiores rearranjos da ordem financeira global em quase um século. O Brasil, ao optar por diversificar suas reservas, pode se colocar na vanguarda dessa transição.
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