Bofetada humanitária
A flotilha desarmada, só por navegar, provou que se encontrava no lado correto da razão
Algumas situações na vida têm tudo para dar errado - e dão certo. Foi assim, por exemplo, com Albert Camus, o autor de A peste, órfão de pai, natural das cercanias de Argel, de mãe surda e analfabeta. Consagrou-se como escritor de extraordinária relevância, laureado com o Nobel de Literatura. Outros, gerados em berço de ouro, predestinados ao sucesso, batem a cabeça seguidamente até o fracasso mais agudo e retumbante... Na História da humanidade, a coisa não se passa de modo diferente. Situações vantajosas se tornam adversas – e vice-versa. Como diria Sófocles, não há como dizer de alguém que encontrou a felicidade, enquanto restam trajetórias para cumprir. É a morte que confere à existência um destino.
O episódio da flotilha dirigindo-se a Israel para protestar contra a opressão evoca tais considerações. Ali não se colocavam apenas jovens e ativistas. As embarcações reuniam gente de várias nacionalidades, incluindo parlamentares brasileiros, irmanados pelo desejo de expressar indignação. Positivamente, o mundo se vê em dificuldades diante do que nos chega da luta dos palestinos contra a dominação sionista. Um estado étnico não tem como se afirmar junto aos demais habitantes que a tradição legou ao lugar e que se acham desprovidos de direitos - até às últimas gotas de sangue. ”Podem me prender/Podem me bater/Podem até deixar-me sem comer/Que eu não mudo de opinião!...” Os versos de Zé Kéti, durante a ditadura militar, ficaram registrados em nossos ouvidos. Retornam agora no confronto entre o humanismo e a brutalidade nas águas do Mediterrâneo, para reconhecer que a força bruta mais cedo ou mais tarde sairá derrotada. A época de prestígio dos colonizadores, massacrando nativos, ficou para trás. Estamos num momento em que já não se admitem exibições de poder absoluto em nenhuma porção do planeta, muito menos com populações indefesas, velhos, mulheres e crianças mutilados pela indiferença armada de soldados treinados para agredir. No combate contra a dominação, como observa Bruno Altman citando a carta da ONU, violência se mostra válida e valiosa. Pois, como notava Sartre, na Guerra da Argélia, como fazer frente a exércitos armados até os dentes senão pela via do terrorismo?
A flotilha desarmada, só por navegar, provou que se encontrava no lado correto da razão. Resultados imediatos esbarraram nas interceptações do Exército de Israel. Mantimentos foram confiscados. Além disso, os detidos, anuncia-se, serão deportados. A vitória daquela gente, sem olhos para o futuro, surge com os dias contados. Afinal, não há mal que sempre dure... Espanha, Turquia e cento e oitenta países das Nações Unidos não ignoravam que os efeitos da viagem humanitária não se esgotariam em seu insucesso imediato. O repúdio geral trará consequências…
Claro, assistimos a um problema complexo, de difícil solução. Mentalidades tortas ou perversas não se inclinam com facilidade nem diante das evidências. Tragédias previstas aguardam para ocorrer. Até lá, que experimentem as energias da fraternidade, exercendo-se a plenos pulmões, para quem está dentro ou fora da Faixa de Gaza. Palestinos que ali nasceram, não se curvarão. Ao lado deles, o resto da humanidade também não se curvará. Outras confrontações se preparam. Armas fazem o seu papel. A firmeza da opinião também.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



