Black Mirror, uma lição de economia
A corrida não é por eficiência ou bem-estar social no sentido pleno, mas sim pelo controle
A Netflix publicou uma série chamada Black Mirror (Espelho Negro) com um teor deprimente em todos os seus capítulos. Vamos nos ater ao primeiro deles, o denominado “Gente Comum”. Não pretendo estragar a audiência, mas adianto que se trata de uma alegoria distópica em que uma professora primária, esposa de um operário especializado, tem um tumor cerebral e perde a consciência na sala de aula. Ela pode ser salva por uma tecnologia em que sua consciência tem um backup na nuvem, mas cria uma dependência absolutamente funesta em relação ao fornecedor do serviço. Trata-se de uma verdadeira aula de economia, em que todas as distorções de mercado coexistem de forma assustadora.
A gênese da análise moderna do poder de mercado remonta a Alfred Marshall e à sua conceituação da elasticidade-preço da demanda em 1890. Este fundamento, que quantifica a sensibilidade dos agentes a variações de preços, mostrou-se não apenas resiliente, mas absolutamente transcendente. Sua verdade não se esgota em um contexto histórico específico; pelo contrário, fornece a lógica perene para compreender a relação entre escassez, valor e comportamento. Esta robustez conceitual tornou-se particularmente evidente com a contribuição de pensadores como Edward Chamberlin e Joan Robinson, que nos anos 1930 expandiram o quadro marshalliano ao demonstrar que a diferenciação de produto – frequentemente construída através do marketing – permite à firma escapar da tirania da concorrência perfeita. Ao criar uma identidade única para o seu produto, a empresa não apenas reduz a elasticidade da sua demanda, tornando os consumidores menos sensíveis ao preço, como ergue a sua própria fortaleza de micropoder monopolista, ganhando controle sobre a quantidade ofertada e o preço praticado.
O que verdadeiramente se revela atemporal, portanto, não é a manifestação específica do mercado – seja ele de ferrovias ou de software – mas a arquitetura teórica que o descreve. A teoria econômica, na sua essência, abstrai a lógica da ação humana diante da escassez, preenchendo conceitos como barreiras à entrada, custos de troca e elasticidade com o conteúdo material de cada era. O monopólio do século XIX, assentado em infraestruturas físicas e direitos de passagem, cedeu lugar ao monopólio digital do século XXI, sustentado por ecossistemas tecnológicos fechados e pelo lock-in de dados. Em ambos os casos, porém, a teoria mantém-se fidedigna porque decifra a mesma equação fundamental: a busca pelo poder de mercado e a criação de mecanismos para capturar e reter o excedente econômico.
Esta dinâmica desenha uma corrida eterna e implacável, uma dialética de gato e rato entre agentes econômicos. De um lado, os ofertantes (os gatos) dedicam-se incessantemente à engenharia de novas e mais sofisticadas ratoeiras econômicas – lock-in contratual, assinaturas de renovação automática, ecossistemas integrados – todas concebidas para impedir a fuga dos consumidores e maximizar a captura do excedente. Do outro, os consumidores (os ratos), na sua luta por liberdade e valor, agarram-se a novas tábuas de salvação, na forma de disruptores tecnológicos ou novos fornecedores que prometem melhores condições. Tragicamente, ao fazê-lo, alimentam e fortalecem os próximos gatos, que inevitavelmente construirão as suas próprias ratoeiras. Este ciclo, alimentado pela destruição criativa de Schumpeter, é o motor da inovação, mas também a expressão crua da lógica central do sistema.
E é aqui que se expõe a frieza fundamental do capitalismo: para a mecânica deste sistema, a sobrevivência e a qualidade de vida dos "ratos" importam infinitamente menos do que a contínua retenção e acumulação de excedentes. O bem-estar do consumidor é um subproduto incidental da competição, nunca o seu objetivo primário. O jogo é definido pela acumulação de capital e pela concentração de poder de mercado. Os agentes são perpetuamente incentivados a criar barreiras que restringem a liberdade de escolha e a extrair valor, mesmo que à custa do esgotamento ou da alienação do consumidor.
Nenhuma obra ficcionaliza essa lógica de forma mais crua e didática do que o episódio "Gente Comum" de Black Mirror. A narrativa é uma alegoria distópica que serve como uma verdadeira aula de economia. A professora, ao depender de uma tecnologia vital que armazena sua consciência na nuvem, é submetida à mais pura e funesta manifestação de lock-in econômico. O fornecedor do serviço, detentor de um monopólio sobre a própria existência daquela pessoa, não está vendendo um produto, mas sim controlando o acesso à vida. A "elasticidade-preço" da demanda por sobrevivência é perfeitamente inelástica; o preço pode ser elevado à exaustão, e a consumidora, agora refém absoluta, será forçada a pagá-lo. Todas as distorções de mercado que a teoria descreve – poder de monopólio, barreiras intransponíveis, custos de troca infinitos e a exploração máxima do excedente – coexistem de forma assustadora nessa alegoria.
A corrida, portanto, não é por eficiência ou bem-estar social no sentido pleno, mas sim pelo controle – e quem controla as ratoeiras controla o fluxo do excedente, independentemente do custo humano dessa contenção. Black Mirror demonstra que, quando esta corrida atinge seu estágio mais avançado, o que está em jogo não é mais apenas conveniência ou preço, mas a própria agência e autonomia humanas. A teoria econômica, ao iluminar esta lógica implacável, revela-se não apenas uma ferramenta de análise descritiva, mas um poderoso instrumento para desvendar a filosofia fria e instrumental que governa a dança eterna entre o captor e o capturado, das ferrovias do passado às nuvens digitais do futuro.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.