Ajuda bilionária a Milei desagrada agricultores americanos
"Bailout” de US$ 20 bilhões atravessa fronteiras
A decisão de Washington de apoiar a Argentina com uma linha de swap cambial e outras operações que podem chegar a US$ 20 bilhões vai muito além de uma medida técnica de estabilização financeira. É um gesto de peso político, sinalizando apoio explícito ao governo de Javier Milei em meio a uma economia frágil, inflação persistente e um calendário eleitoral turbulento. Para a Casa Branca, é um movimento estratégico: sustentar um aliado ideológico na América do Sul, limitar o avanço da China e garantir alguma previsibilidade na região.
O anúncio foi feito às margens da 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas, após encontro entre Trump e Milei em Nova York. Ao vincular o pacote de ajuda a esse palco global, Washington conferiu ao gesto um caráter simbólico: trata-se de um endosso político, não apenas de um socorro financeiro. Mas, ao mesmo tempo em que o gesto soa lógico para diplomatas, estrategistas de defesa e agrada aos mercados, provoca ruídos no coração da economia americana — especialmente entre agricultores de soja.
Milei, o agronegócio argentino e a corrida por dólares
Nos últimos meses, o governo Milei tomou diversas medidas para ampliar o ingresso de divisas no país. Entre elas, suspendeu temporariamente as alíquotas de exportação sobre soja, milho e carne — responsáveis por cerca de 45% do superávit comercial argentino. O objetivo declarado foi gerar uma corrida de exportadores para aproveitar a janela de isenção, trazendo até US$ 7 bilhões em vendas externas antes de 31 de outubro. A soja é peça central dessa estratégia: a Argentina é o maior exportador mundial de farelo e óleo de soja, com a China como seu principal comprador.
A lógica é clara: quanto mais dólares entrarem, mais reservas o Banco Central acumula, mais fácil se torna estabilizar o peso e cumprir metas fiscais acordadas com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas essa engrenagem tem um efeito colateral: coloca os produtores norte-americanos em desvantagem competitiva em um mercado global já saturado.
O desconforto dos produtores de soja dos EUA
A reação foi imediata. Associações como a American Soybean Association e políticos do cinturão agrícola, como o senador Chuck Grassley (Iowa), criticaram o pacote de ajuda. Para eles, os Estados Unidos (EUA) estão usando recursos públicos para financiar um concorrente direto, justamente num momento em que os agricultores americanos enfrentam preços deprimidos e tarifas retaliatórias da China.
O argumento é direto: se a Argentina consegue exportar soja com alíquota zero e ainda recebe liquidez em dólares, sua competitividade aumenta, pressionando os preços internacionais e desviando compras chinesas que poderiam ser atendidas pelos EUA. Para produtores que já viram as exportações caírem desde a guerra comercial entre Trump e Pequim, essa é uma provocação difícil de aceitar.
Críticas internas e o dilema “America First”
As críticas não se limitam ao campo agrícola. No Senado, vozes como a da senadora Elizabeth Warren exigiram explicações do Tesouro: “No momento em que muitos americanos lutam para pagar mantimentos, aluguel e dívidas de cartão de crédito, é profundamente preocupante que o presidente pretenda usar fundos emergenciais significativos para inflar o valor da moeda de um governo estrangeiro e reforçar seus mercados financeiros”, afirmou Warren em carta oficial.
Mesmo entre republicanos, o pacote de US$ 20 bilhões gera desconforto, por parecer contradizer o mantra “America First”. Para estrategistas do partido, é difícil justificar a eleitores do Meio-Oeste — região que responde pela maior parte da produção de grãos (milho e soja) do país — o resgate de uma nação estrangeira que, dias antes, suspendeu impostos de exportação para competir com os produtores americanos no mercado global.
Milei como “mini-Trump”: o isolamento do Sul Global
No fundo, a opção de Milei não é apenas econômica: é profundamente política. Ao se alinhar de forma automática a Donald Trump, o presidente argentino se coloca na contramão do que hoje é a agenda majoritária do Sul Global — cooperação em transição energética, defesa do multilateralismo e busca de autonomia frente aos blocos hegemônicos. Não é atoa que não quis participar do BRICS.
Milei aposta na mesma lógica de confrontação e dependência externa que marcou as décadas de ajuste neoliberal: cortar gastos, dolarizar expectativas e buscar salvação financeira em Washington. O resultado, por ora, é uma economia em recessão, com inflação ainda alta, queda do poder de compra da população, aumento da pobreza e insatisfação crescente.
Ao posar como “mini-Trump”, Milei transforma a ajuda bilionária em vitrine política após uma derrota monumental na recente eleição na província de Buenos Aires — que concentra quase 40 % do eleitorado argentino. A coalizão peronista liderada pelo governador Axel Kicillof, figura de destaque do Partido Justicialista e que recentemente lançou o movimento Derecho al Futuro para renovar o peronismo, obteve cerca de 47 % dos votos, contra 33 % da coalizão governista La Libertad Avanza. A retumbante vitória da oposição peronista enfraquece Milei no maior distrito eleitoral do país e sinaliza perda de apoio popular a seu programa de ajuste e dolarização que até agora não ofereceu respostas estruturais para os problemas de emprego, pobreza e desigualdade que corroem a sociedade argentina.
A ajuda de US$ 20 bilhões a Milei não é apenas um cheque diplomático ou um pacote financeiro — é um ato de alinhamento político em um momento em que o palco da ONU expõe, lado a lado, dois projetos de mundo. De um lado, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que abriu a Assembleia Geral defendendo soberania, multilateralismo e uma agenda climática que busca reposicionar o Sul Global como protagonista. Do outro, Milei, que se apresenta como fiel escudeiro de Donald Trump, buscando legitimidade sob o guarda-chuva de Washington e oferecendo, em troca, adesão a uma agenda que reforça dependências históricas.
O contraste é gritante: Lula tenta engrandecer o papel do Brasil e da América do Sul na governança global, chamando ao diálogo e à cooperação; Milei se apequena ao transformar a Assembleia em palco para celebrar um resgate que revela a fragilidade de seu próprio projeto econômico. Entre engrandecimento e apequenamento, os líderes sul-americanos mostram ao mundo que há dois caminhos — e que as escolhas feitas hoje terão impacto duradouro sobre a autonomia, a estabilidade e o lugar da região no século XXI.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.