A promessa da paz mundial não prescreveu — o que prescreveram foram as desculpas
Quarenta anos de promessas desfeitas não anularam o chamado. A paz é obrigação urgente, não luxo diplomático
Há documentos que não envelhecem.
São como bússolas espirituais: mantêm-se de pé mesmo quando os ventos políticos, econômicos e sociais sopram em direções opostas. “A Promessa da Paz Mundial aos Povos do Mundo” é um desses marcos. Longe de ser peça de arquivo, permanece como referência incômoda e luminosa, capaz de revelar a distância entre o que se proclamou e o que se pratica.
Quarenta anos depois, a humanidade parece estar numa encruzilhada ainda mais sombria. De um lado, a sofisticação tecnológica que conecta bilhões em segundos. De outro, a multiplicação de guerras, a expansão de regimes autoritários, a destruição ambiental e a indiferença diante de milhões de vidas descartáveis. A promessa de paz não se extinguiu — mas está sitiada.
O texto de 1985 ousava afirmar que a paz não era sonho utópico nem mera aspiração, mas possibilidade concreta, condição inevitável para a sobrevivência da humanidade. Hoje, essa ousadia soa quase heresia num mundo em que as guerras transmitem em tempo real corpos despedaçados, enquanto líderes disputam manchetes e votos como quem joga xadrez com a morte. Mas é precisamente aí que o documento recupera sua atualidade: ele não fala de paz como ausência de guerra, e sim como construção paciente de justiça, equidade, educação, respeito aos direitos humanos e unidade.
A paz não é resultado automático de conferências internacionais, tratados comerciais ou cúpulas diplomáticas. É consequência de um pacto civilizatório que começa nas entranhas da cultura e da consciência coletiva. Quando a promessa alerta que a paz exige nova forma de pensar e agir, aponta para uma revolução interior tão radical quanto qualquer transformação política. Sem ela, não há sistema que resista.
Os anos que se seguiram ao lançamento da Promessa revelaram contradições eloquentes. A queda do Muro de Berlim foi saudada como aurora da liberdade; três décadas depois, erguem-se novos muros, físicos e simbólicos. As Nações Unidas ganharam protagonismo ao declarar 1986 como o Ano Internacional da Paz; hoje, a ONU se debate entre impotência e irrelevância diante das grandes potências que a usam como tabuleiro.
E, no entanto, a chama persiste.
O documento desafia cada geração a não se conformar com a lógica do medo e da violência. Sua voz lembra que a humanidade não é soma de tribos isoladas, mas um único organismo vivo — e, quando um de seus membros sangra, todo o corpo sofre. Isso deveria bastar para despertar em nós o incômodo de ver povos indígenas massacrados em silêncio, mulheres vítimas do feminicídio cotidiano, ciganos empurrados para a invisibilidade social. Não são notas de rodapé: são feridas abertas que negam a promessa.
É nesse ponto que o estilo de 1985 encontra o desafio de 2025.
O documento falava ao futuro; cabe a nós assumir o presente. As palavras “unidade na diversidade” não podem ser slogans reciclados em discursos oficiais: precisam tornar-se prática política, pedagógica e cultural.
E aviso aos desorientados navegantes: não se trata de uniformizar o mundo, mas de aprender com a diferença sem transformá-la em sentença de exclusão.
Um artigo como este não pode terminar em tom de editorial otimista. A realidade não autoriza ingenuidades. Mas também não cabe render-se ao cinismo dos que decretam a paz impossível. O que aquele manifesto de 1985 nos oferece é um convite: olhar de frente a brutalidade do mundo sem abdicar da ternura como estratégia de sobrevivência.
Se a promessa de paz mundial parece cada vez mais distante, é porque ainda não decidimos pagar o preço de sua concretização. Esse preço se chama coragem: coragem de rever privilégios, redistribuir recursos, enfrentar injustiças, desmontar preconceitos, transformar instituições. A paz não será dada de presente; será conquistada no suor, no diálogo, na persistência. Foi nesse espírito que “A Promessa da Paz Mundial” foi emitida pela Comunidade Internacional Bahá’í em 1985 e, no ano seguinte, 1986, entregue a reis, presidentes e primeiros-ministros — em suma, aos governantes da Terra — muitas vezes de forma oficial em audiências solenes, como chamado à consciência planetária e lembrete de que a paz depende de escolhas humanas, não de milagres.
Agora, quatro décadas depois, a Câmara dos Deputados do Brasil convocou para o dia 14 de outubro próximo, às 14 horas, uma audiência pública para assinalar os 40 anos da publicação de A Promessa da Paz Mundial aos Povos do Mundo. Será um momento histórico de reflexão inadiável sobre o conteúdo do documento, que permanece, a cada dia, mais atual e urgente. Entre discursos e análises, o essencial não será apenas recordar o passado, mas assumir que a promessa é um desafio presente, que exige de todos responsabilidade, coragem e compromisso coletivo.
Quarenta anos depois, o documento não é uma peça nostálgica. É um grito que atravessa décadas e expõe nossa covardia coletiva. A História nos observa — implacável, paciente, mas impiedosa com a omissão. A cada geração cabe decidir se perpetua o ciclo de violência ou se ousa rasgar o roteiro da barbárie para escrever páginas inéditas. A promessa não perdeu sua validade, tampouco prescreveu. O que se tornou insustentável, dia após dia, é a desculpa esfarrapada — e cínica — de que a paz seria impossível.
A paz não é utopia distante: é urgência concreta, condição de sobrevivência, exigência moral inadiável. Recusá-la é decretar a falência da humanidade. Abraçá-la é, finalmente, escolher não sobreviver apenas, mas viver com dignidade.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.