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Gustavo Guerreiro

Indigenista na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades, editor da Revista Tensões Mundiais. Doutor em Políticas Públicas. Especialista em questões militares. Diretor de Pesquisas do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).

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Para que serve a ONU, afinal?

A crise em Gaza expõe a falência da ONU e reforça a urgência de reformar o Conselho de Segurança

Israel intensifica bombardeios contra palestinos em Gaza (Foto: Nathan Howard/Reuters)

As imagens que nos chegam de Gaza, transmitidas por agências como a Al Jazeera neste setembro de 2025, não documentam uma guerra; elas registram o colapso de uma ideia. A ideia, nascida dos escombros da Segunda Guerra Mundial, de que a humanidade havia enfim forjado instrumentos capazes de conter seus piores instintos. Vemos tanques Merkava, silhuetas fantasmagóricas envoltas na poeira de edifícios pulverizados, avançando sobre o que resta da Cidade de Gaza. A justificativa oficial é sempre a mesma, gasta, quase um mantra burocrático: fala em “alvos cirúrgicos” para “erradicar o Hamas”. Mas o que a câmera revela, sem o filtro da retórica asséptica, é o retrato de uma catástrofe: hospitais transformados em necrotérios, escolas em abrigos superlotados e, por fim, em alvos.

Confesso que o cinismo, esse companheiro de ofício de quem observa a política internacional há mais de duas décadas, já deveria ter me calejado. Mas há momentos em que a realidade perfura a armadura. Um desses momentos chegou com o relatório de um corpo técnico da ONU que, abandonando os eufemismos diplomáticos que tanto paralisam a instituição, usou a palavra: genocídio.

Não é uma palavra qualquer. Carrega o peso de Ruanda, da Bósnia, do Holocausto. Seu emprego por um órgão das Nações Unidas, por mais que contestado por Israel e seus aliados, eleva a tragédia de Gaza de um conflito regional, por mais assimétrico e brutal que seja, a um crime contra a própria humanidade, nos termos da Convenção de 1948. A dissonância cognitiva é estarrecedora: enquanto o jargão militar insiste em falar em “precisão cirúrgica”, o direito humanitário internacional começa a diagnosticar um câncer terminal. E, no centro dessa esquizofrenia, reside a falência do sistema multilateral.

O Conselho de Segurança da ONU, concebido para ser o “guardião da paz mundial”, tornou-se seu mais previsível e melancólico teatro do absurdo. Assistimos ao mesmo roteiro, mais repetido do que filme da franquia Velozes e Furiosos na TV. Uma resolução, proposta por algum país com a ingênua esperança de que a letra da Carta da ONU ainda signifique algo, pede um cessar-fogo imediato, a abertura de corredores humanitários, o fim do cerco. O texto é debatido. Diplomatas leem discursos bem escritos. E então, invariavelmente, a mão se ergue: o veto. Quase sempre, a mão dos Estados Unidos, invocando o “direito de Israel à autodefesa”.

É aqui que a banalidade começa. Um amigo diplomata me explicou que o veto deveria ser um mecanismo de último recurso para proteger interesses vitais de uma superpotência e evitar um conflito global. O que se vê é que ele se converteu em uma ferramenta de obstrução sistemática da justiça e da proteção de civis. Transforma a mais alta instância da diplomacia mundial num tribunal de júri sabotado, onde um dos jurados tem poder de obstruir deliberadamente o veredito, garantindo a impunidade do réu, não importam as evidências ou a brutalidade do crime. A cada veto, não é apenas a população de Gaza que é condenada; é a própria credibilidade do sistema que se esvai. Como escreveu recentemente um editorialista do jornal El País, a ONU arrisca-se a ter o mesmo destino da Liga das Nações: uma bela ideia sepultada pela sua própria irrelevância.

Esse esvaziamento dos tratados não começou ontem. Ele foi acelerado e, de certa forma, legitimado pela narrativa da “guerra ao terror”, que se consolidou após o 11 de Setembro. Aquela doutrina acabou por se tornar um cheque em branco para que Estados exercessem uma violência desproporcional sob o pretexto da segurança nacional. O inimigo, rotulado como “terrorista”, é desumanizado e destituído das proteções mais elementares das Convenções de Genebra. O que vemos em Gaza é a aplicação radical dessa lógica. Gaza, com seus mais de dois milhões de habitantes — metade dos quais crianças, conforme o UNICEF —, é tratada como uma fortaleza terrorista, onde a distinção entre combatente e civil, pilar do direito de guerra, foi implodida junto com os edifícios.

É uma lógica perversa que contamina o debate global. Qualquer crítica mais assertiva à condução da guerra por parte do governo de Israel é imediatamente rotulada como antissemitismo, numa chantagem intelectual que visa silenciar a dissidência e paralisar a ação diplomática. Não nos enganemos: criticar as políticas de um governo, qualquer governo, não é o mesmo que odiar um povo. Pelo contrário, muitos dos críticos mais veementes das ações em Gaza são judeus, dentro e fora de Israel, como Breno Altman, que veem com horror o sequestro de sua história ou de sua fé para justificar o que consideram injustificável.

Neste cenário desolador, o que pode fazer o Brasil? Nosso país, que por tradição diplomática e em governos democráticos se pauta pelo multilateralismo e pela solução pacífica dos conflitos, assume em breve a presidência do G20. Seria fácil e cômodo limitar-se a emitir notas de repúdio e a fazer discursos protocolares em Nova York. Mas a história cobra mais de nós em momentos assim.

O Brasil tem mais que a oportunidade: tem o dever de usar esse espaço para pautar o inadiável — a reforma do Conselho de Segurança da ONU. O caso de Gaza não é um ponto fora da curva; é o sintoma mais agudo de uma doença crônica. A arquitetura de poder de 1945 é anacrônica e incapaz de responder aos desafios do século XXI. É preciso ter a coragem de dizer o óbvio: um sistema em que cinco países têm o poder de paralisar a vontade de todo o resto do planeta não é um sistema de segurança coletiva, mas um fóssil da Guerra Fria.

A proposta brasileira, a ser defendida com a veemência que a urgência exige, deveria ser clara: vincular a estabilidade econômica global, tema fundamental ao G20, à necessária reforma das instituições de governança política. Argumentar que não haverá prosperidade sustentável num mundo onde massacres podem ser transmitidos ao vivo com a chancela passiva das grandes potências. Usar o horror de Gaza não como um porrete ideológico, mas como a evidência irrefutável de que o sistema quebrou.

Enquanto escrevo, os blindados continuam a avançar e os mísseis continuam a cair. Os tratados, que um dia foram a promessa de um “nunca mais”, jazem em algum arquivo empoeirado de Genebra, emudecidos pelo barulho dos vetos e das bombas. O crepúsculo que se abate sobre eles não ameaça apenas os palestinos; lança uma sombra sobre todos nós. Pois, quando as leis que criamos para nos proteger da nossa própria brutalidade se tornam letra morta, o que nos resta? A pergunta é urgente e, por enquanto, não há resposta. Apenas o silêncio ensurdecedor da impotência.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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