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Gustavo Guerreiro

Indigenista na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades, editor da Revista Tensões Mundiais. Doutor em Políticas Públicas. Especialista em questões militares. Diretor de Pesquisas do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).

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A justiça climática no corpo das mulheres indígenas

Ao marcharem juntas, as mulheres indígenas não miraram um governo específico, mas uma lógica que transforma territórios e corpos em zonas de sacrifício

Brasília (DF), 07/08/2025 - Passeata "IV Marcha das Mulheres Indígenas" (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

Às vésperas da COP30, enquanto Brasília ajusta discursos sobre liderança ambiental e Belém se prepara para acolher o mundo, outro Brasil se apresentou, sem filtros, na 1ª Conferência Nacional das Mulheres Indígenas. Não foi um palco para slogans ou selfies oficiais, mas um espelho do Brasil profundo. E o que refletiu ali é a distância entre a imagem de “potência verde” e a vida real nas aldeias. Para essas mulheres, justiça climática não é meta de carbono em planilha internacional; é a diferença entre adoecer e viver, entre romper um ciclo de violência e garantir a continuidade de uma cultura. É política pública que se inscreve no corpo.

O tema do encontro foi “Mulheres Guardiãs do Planeta pela cura da Terra” colocou o debate onde ele precisa estar: no chão. Mulheres de todos os biomas reafirmaram o que a política costuma sofisticar até a inércia: a terra é extensão do corpo, e o corpo é extensão do território. A fórmula pode parecer apenas poética, mas o conteúdo é concreto. “Somos guardiãs dos nossos corpos e dos nossos territórios”, resumiu Jozileia Kaingang, da ANMIGA. A noção de corpo-território, tantas vezes rotulada de “identitária”, se impõe como categoria potente: uma floresta não é um estoque de carbono; é um organismo vivo que, violentado, devolve violência como doença, fome e luto, quase sempre com rosto de mulher e de criança.

Nesse mesmo espírito, a fala da Cacika Irê (Juliana Alves, do povo Jenipapo-Kanindé, do Ceará) sintetizou a virada de método que atravessa o movimento: “O movimento de mulheres indígenas só está conseguindo avançar porque está mostrando para os políticos que há uma diferença enorme entre governar a partir dos gabinetes e estar presente no chão do território”. Não é uma frase de efeito; é um diagnóstico de governança. Ela aponta que a distância entre o papel e a vida, entre o decreto e a vida que pulsa nas aldeias, define o sucesso ou fracasso de qualquer política climática. Estar presente no território, como lembram as lideranças, não é visita protocolar com comitiva e foto; é escuta contínua, serviços que chegam, proteção que fica e processos decisórios que acontecem com e não sobre os povos.

O governo esteve presente e abriu canais de diálogo, com destaque para a participação da ministra Sonia Guajajara e da ministra Marina Silva. Isso importa. Mas a contradição que atravessa a máquina pública segue latente: enquanto se celebra bioeconomia e se reverenciam saberes ancestrais nos palcos, o plano fiscal e político do Congresso Nacional retrógrado ainda atua no compasso da expansão acelerada de commodities e da pressão por flexibilizações ambientais. A retórica de vanguarda climática convive com ofensivas legislativas que fragilizam licenciamento, com a disputa em torno do Marco Temporal das terras indígenas, e com a reativação de obras que historicamente abriram frentes de desmatamento e conflito. Essa fricção não é um detalhe de bastidor para quem precisa viver sem medo.

Há, no entanto, um movimento substantivo e propositivo vindo da base. Reunidas em Brasília, cerca de cinco mil mulheres indígenas de todos os biomas levaram um plano, não apenas queixas. A Conferência organizou propostas em eixos que vão de direito e gestão territorial a emergências climáticas, saúde, educação e enfrentamento à violência de gênero. Dali emergem 50 prioridades para compor um Plano Nacional de Políticas para as Mulheres Indígenas, com compromisso público de encaminhamento pelo governo e a criação de um grupo de trabalho interministerial para dar andamento ao plano. O gesto é inédito e tem densidade institucional: é construção de política feita a partir de uma escuta qualificada, precedida de etapas regionais e ancorada na consulta livre, prévia e informada, como manda a Convenção 169 da OIT, e com medidas concretas como a criação da Casa da Mulher Indígena em cada bioma e a elaboração de protocolos de atendimento específicos para suas realidades.

Essa arquitetura tem um valor adicional, pois recoloca o Estado no território de forma não episódica. Demarcação e proteção territorial — inclusive com desintrusões mantidas no tempo, não apenas operações pontuais — são a política climática mais barata e eficiente que o Brasil tem à mão. A própria ministra dos Povos Indígenas enumerou, em entrevistas oficiais, ações de retirada de invasores em terras como Yanomami, Urueu-Wau-Wau, Karipuna, Trincheira-Bacajá e outras, destacando seu impacto direto na queda do desmatamento. É preciso transformar essas vitórias em rotina administrativa e não em exceções comemoradas com razão, mas sempre sob risco de revés quando a atenção política migra para outro tema.

A Conferência também escancarou o óbvio que costuma se perder em negociações climáticas: aquecimento global é uma categoria útil, mas, nos territórios, a palavra-chave é integridade. Integridade da água, da floresta, do corpo. Integridade institucional também: licenciamento ambiental blindado de atalhos, presença coordenada de Funai, Ibama, Ministério da Justiça, Ministério da Saúde (Sesai), Ministério Público Federal e polícias, e um pacto federativo com estados e municípios para não transformar a proteção em um jogo de empurra. No caso do garimpo, a realidade relatada por lideranças é de sofisticada organização criminosa, com logística, armamento e financiamento. As denúncias de crescimento da presença de facções não ocorrem apenas em áreas de garimpo. A escalada de violência associada ao crime organizado tem se tornado um problema crônico em todo o país, especialmente nas terras indígenas da região Nordeste, em que grupos inteiros são expulsos de suas aldeias e a própria presença do Estado é ameaçada.

O que as mulheres indígenas trouxeram, ao organizar 50 propostas, é um roteiro pragmático que ajuda a alinhar ambição climática com proteção concreta da vida. E aqui vale propor uma mudança de régua. Se o Brasil deseja condicionar sua inserção internacional a uma agenda climática crível, precisa atrelar fluxos de financiamento climático e cláusulas ambientais de acordos comerciais a metas verificáveis de proteção da vida nos territórios. Não apenas hectares preservados e curvas de emissões, mas indicadores humanos: redução da contaminação por mercúrio e agrotóxicos (veneno); queda consistente de violências de gênero e de exploração sexual associada a ciclos de invasão dos territórios; ampliação do acesso a atenção primária intercultural, com equipes que falem a língua e conheçam as práticas de cuidado locais; continuidade de desintrusões com metas anuais e transparência. São métricas auditáveis, simples de comunicar e, sobretudo, dotadas de lastro humano. É preciso converte a onda verde em direitos e serviços.

Esse reequilíbrio exige também rever nossos automatismos desenvolvimentistas. A retórica da infraestrutura como motor incontornável do progresso precisa ser confrontada com evidências sobre vetores de desmatamento e conflitos. Projetos que rasgam corredores ecológicos e eixos de ocupação desgovernada tendem a multiplicar custos sociais e ambientais, acabando com a própria legitimidade da agenda climática que o país quer liderar lá fora. Não se trata de paralisar o Brasil, mas de recolocar a pergunta inicial: desenvolvimento para quem, a que custo e com qual governança? No caso dos territórios indígenas e extrativistas, a resposta não pode continuar sendo a velha fórmula de sacrificar corpos e florestas em nome de promessas que nunca chegam a quem paga o preço.

Há uma dimensão simbólica e política decisiva nessa guinada. Ao marcharem pela Esplanada dos Ministérios, as mulheres indígenas, com suas pinturas, cantos e palavras afiadas, trouxeram a COP30 para o Brasil real. Disseram, a seu modo, que transição ecológica não se fará apenas com painéis solares e veículos elétricos se, ao mesmo tempo, o corpo das guardiãs dos biomas continuar sendo território de sacrifício. E ofereceram, mais do que denúncia, um convite. O convite é para redesenhar prioridades a partir da borda, onde a crise ambiental tem cor e cultura.

Transformar esse convite em política exige alguns passos objetivos. Orçamento carimbado, com linhas específicas para proteção territorial e para a saúde de mulheres e crianças indígenas. Protocolos de atenção integral, da prevenção à resposta rápida à violência de gênero, com equipes que não sejam apenas deslocadas, mas formadas junto às comunidades e lideradas por mulheres indígenas. Fortalecimento de escolas indígenas com currículos que valorizem língua e saberes. Cadeia de responsabilização econômica que alcance os elos do financiamento e da lavagem de dinheiro, para que o crime deixe de compensar. Tudo isso com transparência e participação, como lembram as diretrizes de consulta livre, prévia e informada que embasaram a própria Conferência.

A boa notícia é que os elementos já estão postos. Houve escuta. Há um caderno de propostas. Existe disposição institucional para encaminhar prioridades e formalizar grupos de trabalho. Foram feitas desintrusões e elas surtiram efeito onde ocorreram. Há ciência suficiente para orientar políticas, da epidemiologia às melhores práticas de proteção territorial. E há desejo de futuro pulsando no canto de quem diz que a cura da Terra começa pelo cuidado do corpo que a guarda.

Ao marcharem juntas, elas não miraram um governo específico, mas uma lógica que transforma territórios e corpos em zonas de sacrifício. As mulheres indígenas afirmaram algo simples e incontornável: não haverá transição ecológica se os biomas seguirem guardados por quem tem sua própria integridade negada. Elas não pedem favor; oferecem direção. Cabe ao país aceitar o caminho. A hora de escutar, e de agir à altura do que se escuta, é agora.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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