O Roteiro Fascista de Donald Trump
A história, como se sabe, tem o péssimo hábito de se repetir como farsa, mas a farsa, quando armada, pode ser tão trágica quanto o original
Vamos direto ao ponto, sem os pudores que tantas vezes paralisam parte da academia e da imprensa. A palavra “fascista”, quando aplicada a Donald Trump, ainda causa arrepios, provoca acusações de exagero, de anacronismo histérico. Dizem-nos que é uma categoria histórica rígida, um fantasma europeu do século XX que não se pode, sob pena de leviandade intelectual, invocar para descrever um bilionário nova-iorquino, ex-astro de reality show. Até compreendo a cautela. O rigor conceitual é a base do pensamento sério. Mas a recusa em nomear o fenômeno pelo que ele é, ou pelo que ele emula com assustadora precisão, tornou-se uma forma de cumplicidade, uma paralisia analítica que nos impede de ver o abismo para o qual o chamado “mundo livre” se inclina.
O trumpismo, é claro, não se apresenta com suásticas e camisas negras, até mesmo porque seria anacrônico e, convenhamos, esteticamente pobre para a era do espetáculo midiático, mas opera a partir da mesma matriz, do mesmo manual de instruções. É um fascismo reembalado para o consumo em massa no século XXI, adaptado à linguagem das redes sociais e nutrido no coração do império estadunidense, o que o torna infinitamente mais perigoso. Como nos lembrava o saudoso Umberto Eco em seu célebre ensaio sobre o “Ur-Fascismo”, ou o Fascismo Eterno, não é preciso que todas as quatorze características que ele listou estejam presentes simultaneamente. Basta que uma delas se torne o centro de uma nebulosa para que a podridão fascista comece a se condensar. No caso de Trump, a nuvem é densa e escura.
Comecemos pelo mais óbvio, a pedra angular de sua arquitetura política: o culto à tradição e a consequente rejeição à modernidade. O slogan “Make America Great Again” é uma obra-prima de engenharia nostálgica. Ele não se refere a um período histórico concreto, passível de verificação nos livros de história ou nos dados do IBGE estadunidense. Não, ele evoca um passado mítico, onde a América era branca, cristã, industrial e incontestavelmente patriarcal. É um chamado não à memória, mas a uma fantasia coletiva, um mito. Essa tradição inventada serve de cavalo de batalha contra tudo o que o fascismo detesta: o cosmopolitismo, o intelectualismo, as artes e a complexidade. A modernidade, com sua defesa da ciência, dos direitos das minorias e do diálogo intercultural, é vista como uma degeneração. Por isso, o ataque sistemático à ciência do clima – culminando na retirada dos EUA do Acordo de Paris, um ato de vandalismo geopolítico –, a guerra declarada às “elites cosmopolitas” das costas Leste e Oeste não são acidentes de percurso. São o ritual de um movimento que precisa destruir o presente para vender a miragem de um passado que nunca existiu.
Em segundo lugar, e derivado diretamente do primeiro ponto, temos a obsessão pela conspiração e a necessidade vital de um inimigo. O fascismo não sobrevive sem um “eles” para culpar por todas as mazelas. A carreira política de Trump foi, desde o início, fundada sobre uma mentira conspiratória: a infame campanha para provar que Barack Obama, o primeiro presidente negro da nação, não havia nascido nos Estados Unidos. Foi a pústula original de onde todo o veneno posterior emanou. Uma vez na Casa Branca, a lógica se expandiu para criar um universo paranoico. O inimigo podia ser interno. A bola da vez era o “Estado profundo” (deep state), uma burocracia fantasmagórica que supostamente sabotava seu governo patriótico. A imprensa, em qualquer regime autoritário um alvo prioritário, foi rotulada, numa frase de ressonância populista, de “inimiga do povo”. E, claro, o bode expiatório por excelência: o imigrante. As caravanas de centro-americanos desesperados foram retratadas como uma horda invasora, uma ameaça à pureza da nação, justificando a construção de um muro que é menos uma barreira física e mais um monumento à xenofobia. Como bem documentado por veículos como o The New York Times ou o britânico The Economist, essa tática não visa resolver problemas, mas sim fabricar um estado de cerco permanente que justifique o poder do líder protetor.
A terceira característica, talvez a mais visceralmente repulsiva, é o desprezo pelos mais fracos e o culto à ação pela ação. A força, no catecismo fascista, é um valor em si mesma. Lembremos da cena grotesca em que Trump, ordenou a deportação de estudantes e acadêmicos estrangeiros sob pretextos frágeis, incluindo acusações infundadas de “antissemitismo” e “ameaças à segurança nacional”, resultando na detenção arbitrária de pesquisadores e estudantes sem acesso a advogados. Lembremos também de sua decisão de restaurar os nomes originais de bases militares que homenageavam líderes confederados, desconsiderando o simbolismo racista e a oposição pública, revelando uma mentalidade que perpetua divisões e desprezo por valores democráticos. Os vulneráveis, os imigrantes, os dissidentes, os marginalizados merecem apenas desprezo.
Em contrapartida, há uma admiração quase juvenil por “homens fortes”, como Putin e Kim Jong-un, embora declarados inimigos. Essa celebração da força bruta se manifesta no estilo de governo: a ação impulsiva, a quebra de protocolos diplomáticos, a decisão tomada por instinto e não por deliberação. Tudo isso é vendido ao eleitorado como “autenticidade”, como a marca de um líder que “faz acontecer”, que não se prende às filigranas da burocracia democrática e da ordem internacional. É a ação pela ação, o movimento como um fim em si mesmo, uma característica central que Umberto Eco identificou no fascismo histórico.
E essa performance da força não se limitava a gestos e palavras; ela se traduzia em política externa de uma arbitrariedade desconcertante. Basta recordar o episódio em que, por meio de um tuíte matinal, Trump decidiu impor tarifas de 50% sobre o aço e o alumínio do Brasil. O pretexto era uma suposta “desvalorização maciça” do Real que estaria prejudicando os agricultores estadunidenses, embora saibamos que haja várias desculpas esfarrapadas e conluio com conspiradores brasileiros, o que não pretendo abordar aqui. O ato em si, revertendo isenções anteriores, era um exemplo clássico do decisionismo autoritário. Pouco importava que o Brasil, sob o governo Lula, buscasse manter um diálogo institucional e pragmático, ou que as relações comerciais entre os dois países somassem 200 anos de história. Para o líder movido pelo culto à ação, a tradição diplomática e o respeito aos tratados bilaterais são meros obstáculos a serem esmagados pelo espetáculo de sua própria vontade.
Finalmente, chegamos à tática mais insidiosa, a que envenena o próprio poço da vida pública: o uso da “novilíngua” para destruir o conceito de verdade. Se George Orwell nos deu o roteiro em 1984, Trump o encenou com um talento assustador. A expressão “fatos alternativos”, cunhada por sua ex-conselheira Kellyanne Conway para defender mentiras descaradas sobre o tamanho da multidão na posse presidencial, deveria ter soado todos os alarmes. Foi o momento em que a realidade objetiva foi oficialmente declarada opcional. A partir disso, o projeto de demolição epistemológica acelerou. Qualquer reportagem crítica, por mais bem documentada que fosse por fontes, sobretudo na mídia alternativa, era sumariamente descartada como “fake news”. O termo, que originalmente descrevia a desinformação produzida por agentes obscuros, foi cooptado e transformado em uma arma para desacreditar o jornalismo profissional. O objetivo dessa distorção sistemática da linguagem não é apenas mentir; é criar um ambiente em que a própria distinção entre verdade e mentira se torna irrelevante. É afogar o cidadão em um pântano de cinismo, onde o único porto seguro que resta é a palavra do líder.
A reeleição de Donald Trump foi, paradoxalmente, a menor de nossas preocupações. O estrago maior já foi feito. A ascensão de Trump e a resiliência de seu movimento normalizaram um conjunto de táticas fascistas no palco central da política global. O manual foi testado, aprovado e agora está em uso por autocratas em todo o mundo.
Nós, no Brasil, conhecemos este manual de perto. Vimos um presidente importar o roteiro quase que integralmente: o ataque às universidades e à ciência, a guerra contra a imprensa, a criação de um “gabinete do ódio” para disseminar conspirações, a nostalgia de uma ditadura mítica, o culto às armas e à força bruta. O discípulo talvez não tenha tido o mesmo sucesso do mestre em se perpetuar no poder, mas a semente foi plantada e regada em solo fértil.
O perigo, portanto, transcende a figura de Trump. O perigo é a legitimação do método. A luta antifascista hoje, seja em Washington, Budapeste ou Brasília, não pode ser apenas uma disputa eleitoral. Ela precisa ser uma defesa intransigente e apaixonada da verdade factual, do debate racional, da empatia pelos mais vulneráveis e de uma democracia que não tenha medo de ser radical em sua defesa das instituições e dos direitos humanos. Ignorar os sinais, tratar o roteiro como mera metáfora, é um luxo que não podemos mais nos permitir. A história, como se sabe, tem o péssimo hábito de se repetir como farsa, mas a farsa, quando armada, pode ser tão trágica quanto o original.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.