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Gustavo Guerreiro

Indigenista na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades, editor da Revista Tensões Mundiais. Doutor em Políticas Públicas. Especialista em questões militares. Diretor de Pesquisas do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).

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O Roteiro Fascista de Donald Trump

A história, como se sabe, tem o péssimo hábito de se repetir como farsa, mas a farsa, quando armada, pode ser tão trágica quanto o original

Presidente dos EUA Donald Trump em Turnberry (Foto: REUTERS/Evelyn Hockstein)

Vamos direto ao ponto, sem os pudores que tantas vezes paralisam parte da academia e da imprensa. A palavra “fascista”, quando aplicada a Donald Trump, ainda causa arrepios, provoca acusações de exagero, de anacronismo histérico. Dizem-nos que é uma categoria histórica rígida, um fantasma europeu do século XX que não se pode, sob pena de leviandade intelectual, invocar para descrever um bilionário nova-iorquino, ex-astro de reality show. Até compreendo a cautela. O rigor conceitual é a base do pensamento sério. Mas a recusa em nomear o fenômeno pelo que ele é, ou pelo que ele emula com assustadora precisão, tornou-se uma forma de cumplicidade, uma paralisia analítica que nos impede de ver o abismo para o qual o chamado “mundo livre” se inclina.

O trumpismo, é claro, não se apresenta com suásticas e camisas negras, até mesmo porque seria anacrônico e, convenhamos, esteticamente pobre para a era do espetáculo midiático, mas opera a partir da mesma matriz, do mesmo manual de instruções. É um fascismo reembalado para o consumo em massa no século XXI, adaptado à linguagem das redes sociais e nutrido no coração do império estadunidense, o que o torna infinitamente mais perigoso. Como nos lembrava o saudoso Umberto Eco em seu célebre ensaio sobre o “Ur-Fascismo”, ou o Fascismo Eterno, não é preciso que todas as quatorze características que ele listou estejam presentes simultaneamente. Basta que uma delas se torne o centro de uma nebulosa para que a podridão fascista comece a se condensar. No caso de Trump, a nuvem é densa e escura.

Comecemos pelo mais óbvio, a pedra angular de sua arquitetura política: o culto à tradição e a consequente rejeição à modernidade. O slogan “Make America Great Again” é uma obra-prima de engenharia nostálgica. Ele não se refere a um período histórico concreto, passível de verificação nos livros de história ou nos dados do IBGE estadunidense. Não, ele evoca um passado mítico, onde a América era branca, cristã, industrial e incontestavelmente patriarcal. É um chamado não à memória, mas a uma fantasia coletiva, um mito. Essa tradição inventada serve de cavalo de batalha contra tudo o que o fascismo detesta: o cosmopolitismo, o intelectualismo, as artes e a complexidade. A modernidade, com sua defesa da ciência, dos direitos das minorias e do diálogo intercultural, é vista como uma degeneração. Por isso, o ataque sistemático à ciência do clima – culminando na retirada dos EUA do Acordo de Paris, um ato de vandalismo geopolítico –, a guerra declarada às “elites cosmopolitas” das costas Leste e Oeste não são acidentes de percurso. São o ritual de um movimento que precisa destruir o presente para vender a miragem de um passado que nunca existiu.

Em segundo lugar, e derivado diretamente do primeiro ponto, temos a obsessão pela conspiração e a necessidade vital de um inimigo. O fascismo não sobrevive sem um “eles” para culpar por todas as mazelas. A carreira política de Trump foi, desde o início, fundada sobre uma mentira conspiratória: a infame campanha para provar que Barack Obama, o primeiro presidente negro da nação, não havia nascido nos Estados Unidos. Foi a pústula original de onde todo o veneno posterior emanou. Uma vez na Casa Branca, a lógica se expandiu para criar um universo paranoico. O inimigo podia ser interno. A bola da vez era o “Estado profundo” (deep state), uma burocracia fantasmagórica que supostamente sabotava seu governo patriótico. A imprensa, em qualquer regime autoritário um alvo prioritário, foi rotulada, numa frase de ressonância populista, de “inimiga do povo”. E, claro, o bode expiatório por excelência: o imigrante. As caravanas de centro-americanos desesperados foram retratadas como uma horda invasora, uma ameaça à pureza da nação, justificando a construção de um muro que é menos uma barreira física e mais um monumento à xenofobia. Como bem documentado por veículos como o The New York Times ou o britânico The Economist, essa tática não visa resolver problemas, mas sim fabricar um estado de cerco permanente que justifique o poder do líder protetor.

A terceira característica, talvez a mais visceralmente repulsiva, é o desprezo pelos mais fracos e o culto à ação pela ação. A força, no catecismo fascista, é um valor em si mesma. Lembremos da cena grotesca em que Trump, ordenou a deportação de estudantes e acadêmicos estrangeiros sob pretextos frágeis, incluindo acusações infundadas de “antissemitismo” e “ameaças à segurança nacional”, resultando na detenção arbitrária de pesquisadores e estudantes sem acesso a advogados. Lembremos também de sua decisão de restaurar os nomes originais de bases militares que homenageavam líderes confederados, desconsiderando o simbolismo racista e a oposição pública, revelando uma mentalidade que perpetua divisões e desprezo por valores democráticos. Os vulneráveis, os imigrantes, os dissidentes, os marginalizados merecem apenas desprezo.

Em contrapartida, há uma admiração quase juvenil por “homens fortes”, como Putin e Kim Jong-un, embora declarados inimigos. Essa celebração da força bruta se manifesta no estilo de governo: a ação impulsiva, a quebra de protocolos diplomáticos, a decisão tomada por instinto e não por deliberação. Tudo isso é vendido ao eleitorado como “autenticidade”, como a marca de um líder que “faz acontecer”, que não se prende às filigranas da burocracia democrática e da ordem internacional. É a ação pela ação, o movimento como um fim em si mesmo, uma característica central que Umberto Eco identificou no fascismo histórico.

E essa performance da força não se limitava a gestos e palavras; ela se traduzia em política externa de uma arbitrariedade desconcertante. Basta recordar o episódio em que, por meio de um tuíte matinal, Trump decidiu impor tarifas de 50% sobre o aço e o alumínio do Brasil. O pretexto era uma suposta “desvalorização maciça” do Real que estaria prejudicando os agricultores estadunidenses, embora saibamos que haja várias desculpas esfarrapadas e conluio com conspiradores brasileiros, o que não pretendo abordar aqui. O ato em si, revertendo isenções anteriores, era um exemplo clássico do decisionismo autoritário. Pouco importava que o Brasil, sob o governo Lula, buscasse manter um diálogo institucional e pragmático, ou que as relações comerciais entre os dois países somassem 200 anos de história. Para o líder movido pelo culto à ação, a tradição diplomática e o respeito aos tratados bilaterais são meros obstáculos a serem esmagados pelo espetáculo de sua própria vontade.

Finalmente, chegamos à tática mais insidiosa, a que envenena o próprio poço da vida pública: o uso da “novilíngua” para destruir o conceito de verdade. Se George Orwell nos deu o roteiro em 1984, Trump o encenou com um talento assustador. A expressão “fatos alternativos”, cunhada por sua ex-conselheira Kellyanne Conway para defender mentiras descaradas sobre o tamanho da multidão na posse presidencial, deveria ter soado todos os alarmes. Foi o momento em que a realidade objetiva foi oficialmente declarada opcional. A partir disso, o projeto de demolição epistemológica acelerou. Qualquer reportagem crítica, por mais bem documentada que fosse por fontes, sobretudo na mídia alternativa, era sumariamente descartada como “fake news”. O termo, que originalmente descrevia a desinformação produzida por agentes obscuros, foi cooptado e transformado em uma arma para desacreditar o jornalismo profissional. O objetivo dessa distorção sistemática da linguagem não é apenas mentir; é criar um ambiente em que a própria distinção entre verdade e mentira se torna irrelevante. É afogar o cidadão em um pântano de cinismo, onde o único porto seguro que resta é a palavra do líder.

A reeleição de Donald Trump foi, paradoxalmente, a menor de nossas preocupações. O estrago maior já foi feito. A ascensão de Trump e a resiliência de seu movimento normalizaram um conjunto de táticas fascistas no palco central da política global. O manual foi testado, aprovado e agora está em uso por autocratas em todo o mundo.

Nós, no Brasil, conhecemos este manual de perto. Vimos um presidente importar o roteiro quase que integralmente: o ataque às universidades e à ciência, a guerra contra a imprensa, a criação de um “gabinete do ódio” para disseminar conspirações, a nostalgia de uma ditadura mítica, o culto às armas e à força bruta. O discípulo talvez não tenha tido o mesmo sucesso do mestre em se perpetuar no poder, mas a semente foi plantada e regada em solo fértil.

O perigo, portanto, transcende a figura de Trump. O perigo é a legitimação do método. A luta antifascista hoje, seja em Washington, Budapeste ou Brasília, não pode ser apenas uma disputa eleitoral. Ela precisa ser uma defesa intransigente e apaixonada da verdade factual, do debate racional, da empatia pelos mais vulneráveis e de uma democracia que não tenha medo de ser radical em sua defesa das instituições e dos direitos humanos. Ignorar os sinais, tratar o roteiro como mera metáfora, é um luxo que não podemos mais nos permitir. A história, como se sabe, tem o péssimo hábito de se repetir como farsa, mas a farsa, quando armada, pode ser tão trágica quanto o original.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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