Por que R$ 133 bilhões não compram a Defesa que o Brasil precisa
O Brasil ostenta um orçamento de vitrine, insuficiente para sua própria retórica de potência regional
“Teremos marinheiros sem navio, aviadores sem avião, soldados sem botas”, dramatizou o ministro José Múcio, no dia 3 de julho, diante de uma plateia que misturava generais de quatro estrelas e deputados focados na próxima emenda de relator. A declaração, registrada pela CNN Brasil, soaria histriônica se não fosse, infelizmente, verossímil. O Ministério da Defesa exibe um orçamento parrudo: R$ 133,6 bilhões em 2025, o terceiro maior da Esplanada, capaz de fazer inveja a muitos ministérios sociais. Mas, como certas fachadas de casarões coloniais, a imponência esconde rachaduras: R$ 78,9 bilhões são para custeio, como combustível, peças de reposição, munição, pesquisa, satélite, patrulha na Amazônia, construção naval e aspirinas no rancho, porque a conta inclui até assistência médica.
É aqui que mora o diabo, nos detalhes que o debate público, apressado e despolitizado, ignora. O cidadão comum, ao ler nos jornais da mídia corporativa, como Folha, Globo ou Estadão que a Defesa dispõe de tal montanha de dinheiro, é levado a crer que vivemos sob a égide de uma potência militar em franca expansão. A realidade, contudo, é muito mais prosaica e melancólica.
A tese, portanto, é simples: o Brasil ostenta um orçamento de vitrine, insuficiente para sua própria retórica de potência regional. E, ironia do destino, quanto mais o valor nominal cresce, mais se adia a conversa séria sobre prioridades estratégicas, como se a cifra, por si só, fosse blindagem contra a realidade.
Comecemos pelo óbvio ululante: a folha de pagamentos. O Tribunal de Contas da União estima que, em 2024, pagamos 380 mil militares da ativa e quase 400 mil pensionistas. É impossível equipar tropas quando a despesa previdenciária engole, sozinha, o equivalente a todo o orçamento anual da Colômbia para Defesa de US$ 11 bi, segundo o Banco Mundial. Os militares correm o risco de se tornarem a maior associação civil do país.
Naturalmente, há quem argumente que salários são “investimento em capital humano”. Verdade parcial. Sem equipamento, soldado vira burocrata de farda. É como se o governo financiasse um corpo de bailarinos clássicos e cortasse a sapatilha.
Quando se fala em “projetos estratégicos”, surgem dois totens: o caça sueco-brasileiro Gripen e o Programa de Submarinos (PROSUB), com seu mítico submarino nuclear ainda no mundo das ideias. São iniciativas que, bem ou mal, ancoram transferência de tecnologia, emprego de engenheiros e certo orgulho verde-oliva. Mas qual o problema? O Tesouro parcela pagamentos como quem financia uma geladeira em 36 vezes. Em 2025, a FAB receberá apenas duas das oito aeronaves previstas no contrato de aquisição. O próprio Relatório de Execução Financeira informa que falta empenho orçamentário.
Em um mundo que transita da unipolaridade americana para uma nova ordem multipolar, a ascensão do Brasil como uma liderança global, especialmente no âmbito dos BRICS, nos obriga a abandonar a ingênua e autocomplacente noção de que “não temos inimigos”. Se por um lado o país projeta sua influência em fóruns internacionais e na construção de alternativas à hegemonia do dólar, por outro, essa mesma proeminência o torna um alvo estratégico para ameaças contemporâneas que dispensam declarações formais de guerra. E, como pano de fundo, a crise climática acelera a cobiça internacional sobre a biodiversidade amazônica – tema que o Livro Branco da Defesa tocou de raspão, mas que precisa ser retomado para além das manipulações rasteiras de que Ongs internacionais cooptam indígenas para criar nações amazônicas.
Aqui reside o cerne do impasse: ausente consenso político sobre as ameaças, o orçamento vira refém de lobbies corporativos e casuísmos parlamentares. O último Plano Estratégico de Defesa, virou colcha de retalhos que promete de satélite geoestacionário a frota de drones autônomos sem dizer quem paga ou quando.
A demanda antiga, e agora ressuscitada por Múcio, de vincular o orçamento da Defesa a um piso de 2% do PIB precisa ser discutida sem preconceitos. A mera menção da proposta já faz torcer o nariz de parte da intelligentsia da esquerda e dos guardiões neoliberais do teto de gastos. Os primeiros rapidamente evocam o fantasma do militarismo ou a imagem de generais querendo brinquedos novos. É uma visão não apenas simplista, mas perigosa. A questão não é gastar por gastar, mas definir o que queremos ser e quanto custa ser isso.
A meta de 2% do PIB não é uma invenção Tupiniquim; é a referência arbitrária que alguns militares costumam adotar a partir dos países da OTAN. Faço questão de ressaltar: minha rejeição à Aliança Atlântica é profunda e irredutível. É uma estrutura anacrônica, de viés imperialista e responsável por atrocidades geopolíticas. Contudo, há um reconhecimento objetivo a fazer: os países que a compõem, mesmo em sua lógica distorcida, tratam poder nacional com brutal seriedade, embora membros do BRICS, como China e Índia ainda não tenham alcançado esse patamar. Não se trata, portanto, de discutir o valor do orçamento em si, mas como ele deve ser gasto.
Nenhum país sério financia Defesa por inércia. É preciso definir antes as ameaças, depois calcular o preço da dissuasão. Queremos proteger a Amazônia, o pré-sal, quase 17 mil km de fronteiras e 8 mil km de litoral e ainda figurar em missões de paz da ONU, mantendo simultaneamente SUS, Previdência Social, Fundeb e Bolsa Família em dia. Mas as elites prefere alocar recursos emendas de bancada a políticos comprados, que não querem (e nem sabem) explicar ao eleitor que Defesa não é sinônimo de quartel inchado, e sim de equipamentos de ponta cujo retorno é, por definição, evitar um desastre que talvez nunca ocorra.
No fundo, projetamos no Exército a fantasia de que “a pátria está guardada” enquanto encaramos com escárnio e tédio aquelas imagens tradicionais do desfile de 7 de Setembro: blindados Urutu (projeto de 1970) pintados de verde-fosco e soldados marchando sob o sol de Brasília com fuzis FAL herdados da Guerra Fria. Custa perceber que a soberania não desfila, ela patrulha 24 horas, consome diesel e deprecia equipamento.
Chegamos ao ponto crucial: vale ou não aumentar o orçamento da Defesa? Minha resposta é tão simples quanto impopular: depende. Antes de discutir porcentagem, precisamos de um novo Livro Branco, debatido em audiências públicas, traduzido para quem paga a conta. Sem esse pacto, continuarão válidas as leis de ferro da política brasileira: qualquer reajuste orçamentário vira ou reajuste salarial ou saldo de emendas impositivas.
Então, que tal inverter a lógica? É preciso definir missões claras, como vigilância integral da Amazônia, proteção da infraestrutura de petróleo e gás offshore, dissuasão mínima no Atlântico Sul. Depois, precificar cada missão e elencar prioridades (submarino ou satélite? drone ou novo fuzil?). Terceiro, vincular o gasto a metas auditáveis, com transparência que permita ao cidadão saber quantas horas de voo efetivas ganhou cada piloto ou quantas lanchas patrulham o Rio Madeira. Só assim R$ 133 bilhões deixarão de ser cifra de vitrine.
Caso contrário, continuaremos alimentando a ficção de que “o Brasil é grande demais para ser ameaçado” até o dia em que descobrirmos, atônitos, que não se faz soberania com discurso. Pior: talvez descubramos tarde demais, quando percebermos que o navio da história zarpou e nossos marinheiros, coitados, ficaram em terra, contemplando o casco ao longe.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.