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Gustavo Guerreiro

Indigenista na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades, editor da Revista Tensões Mundiais. Doutor em Políticas Públicas. Especialista em questões militares. Diretor de Pesquisas do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).

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Por que R$ 133 bilhões não compram a Defesa que o Brasil precisa

O Brasil ostenta um orçamento de vitrine, insuficiente para sua própria retórica de potência regional

Por que R$ 133 bilhões não compram a Defesa que o Brasil precisa (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

“Teremos marinheiros sem navio, aviadores sem avião, soldados sem botas”, dramatizou o ministro José Múcio, no dia 3 de julho, diante de uma plateia que misturava generais de quatro estrelas e deputados focados na próxima emenda de relator. A declaração, registrada pela CNN Brasil, soaria histriônica se não fosse, infelizmente, verossímil. O Ministério da Defesa exibe um orçamento parrudo: R$ 133,6 bilhões em 2025, o terceiro maior da Esplanada, capaz de fazer inveja a muitos ministérios sociais. Mas, como certas fachadas de casarões coloniais, a imponência esconde rachaduras: R$ 78,9 bilhões são para custeio, como combustível, peças de reposição, munição, pesquisa, satélite, patrulha na Amazônia, construção naval e aspirinas no rancho, porque a conta inclui até assistência médica.

É aqui que mora o diabo, nos detalhes que o debate público, apressado e despolitizado, ignora. O cidadão comum, ao ler nos jornais da mídia corporativa, como Folha, Globo ou Estadão que a Defesa dispõe de tal montanha de dinheiro, é levado a crer que vivemos sob a égide de uma potência militar em franca expansão. A realidade, contudo, é muito mais prosaica e melancólica.

A tese, portanto, é simples: o Brasil ostenta um orçamento de vitrine, insuficiente para sua própria retórica de potência regional. E, ironia do destino, quanto mais o valor nominal cresce, mais se adia a conversa séria sobre prioridades estratégicas, como se a cifra, por si só, fosse blindagem contra a realidade.

Comecemos pelo óbvio ululante: a folha de pagamentos. O Tribunal de Contas da União estima que, em 2024, pagamos 380 mil militares da ativa e quase 400 mil pensionistas. É impossível equipar tropas quando a despesa previdenciária engole, sozinha, o equivalente a todo o orçamento anual da Colômbia para Defesa de US$ 11 bi, segundo o Banco Mundial. Os militares correm o risco de se tornarem a maior associação civil do país.

Naturalmente, há quem argumente que salários são “investimento em capital humano”. Verdade parcial. Sem equipamento, soldado vira burocrata de farda. É como se o governo financiasse um corpo de bailarinos clássicos e cortasse a sapatilha.

Quando se fala em “projetos estratégicos”, surgem dois totens: o caça sueco-brasileiro Gripen e o Programa de Submarinos (PROSUB), com seu mítico submarino nuclear ainda no mundo das ideias. São iniciativas que, bem ou mal, ancoram transferência de tecnologia, emprego de engenheiros e certo orgulho verde-oliva. Mas qual o problema? O Tesouro parcela pagamentos como quem financia uma geladeira em 36 vezes. Em 2025, a FAB receberá apenas duas das oito aeronaves previstas no contrato de aquisição. O próprio Relatório de Execução Financeira informa que falta empenho orçamentário.

Em um mundo que transita da unipolaridade americana para uma nova ordem multipolar, a ascensão do Brasil como uma liderança global, especialmente no âmbito dos BRICS, nos obriga a abandonar a ingênua e autocomplacente noção de que “não temos inimigos”. Se por um lado o país projeta sua influência em fóruns internacionais e na construção de alternativas à hegemonia do dólar, por outro, essa mesma proeminência o torna um alvo estratégico para ameaças contemporâneas que dispensam declarações formais de guerra. E, como pano de fundo, a crise climática acelera a cobiça internacional sobre a biodiversidade amazônica – tema que o Livro Branco da Defesa tocou de raspão, mas que precisa ser retomado para além das manipulações rasteiras de que Ongs internacionais cooptam indígenas para criar nações amazônicas.

Aqui reside o cerne do impasse: ausente consenso político sobre as ameaças, o orçamento vira refém de lobbies corporativos e casuísmos parlamentares. O último Plano Estratégico de Defesa, virou colcha de retalhos que promete de satélite geoestacionário a frota de drones autônomos sem dizer quem paga ou quando.

A demanda antiga, e agora ressuscitada por Múcio, de vincular o orçamento da Defesa a um piso de 2% do PIB precisa ser discutida sem preconceitos. A mera menção da proposta já faz torcer o nariz de parte da intelligentsia da esquerda e dos guardiões neoliberais do teto de gastos. Os primeiros rapidamente evocam o fantasma do militarismo ou a imagem de generais querendo brinquedos novos. É uma visão não apenas simplista, mas perigosa. A questão não é gastar por gastar, mas definir o que queremos ser e quanto custa ser isso. 

A meta de 2% do PIB não é uma invenção Tupiniquim; é a referência arbitrária que alguns militares costumam adotar a partir dos países da OTAN. Faço questão de ressaltar: minha rejeição à Aliança Atlântica é profunda e irredutível. É uma estrutura anacrônica, de viés imperialista e responsável por atrocidades geopolíticas. Contudo, há um reconhecimento objetivo a fazer: os países que a compõem, mesmo em sua lógica distorcida, tratam poder nacional com brutal seriedade, embora membros do BRICS, como China e Índia ainda não tenham alcançado esse patamar. Não se trata, portanto, de discutir o valor do orçamento em si, mas como ele deve ser gasto.

Nenhum país sério financia Defesa por inércia. É preciso definir antes as ameaças, depois calcular o preço da dissuasão. Queremos proteger a Amazônia, o pré-sal, quase 17 mil km de fronteiras e 8 mil km de litoral e ainda figurar em missões de paz da ONU, mantendo simultaneamente SUS, Previdência Social, Fundeb e Bolsa Família em dia. Mas as elites prefere alocar recursos emendas de bancada a políticos comprados, que não querem (e nem sabem) explicar ao eleitor que Defesa não é sinônimo de quartel inchado, e sim de equipamentos de ponta cujo retorno é, por definição, evitar um desastre que talvez nunca ocorra.

No fundo, projetamos no Exército a fantasia de que “a pátria está guardada” enquanto encaramos com escárnio e tédio aquelas imagens tradicionais do desfile de 7 de Setembro: blindados Urutu (projeto de 1970) pintados de verde-fosco e soldados marchando sob o sol de Brasília com fuzis FAL herdados da Guerra Fria. Custa perceber que a soberania não desfila, ela patrulha 24 horas, consome diesel e deprecia equipamento.

Chegamos ao ponto crucial: vale ou não aumentar o orçamento da Defesa? Minha resposta é tão simples quanto impopular: depende. Antes de discutir porcentagem, precisamos de um novo Livro Branco, debatido em audiências públicas, traduzido para quem paga a conta. Sem esse pacto, continuarão válidas as leis de ferro da política brasileira: qualquer reajuste orçamentário vira ou reajuste salarial ou saldo de emendas impositivas.

Então, que tal inverter a lógica? É preciso definir missões claras, como vigilância integral da Amazônia, proteção da infraestrutura de petróleo e gás offshore, dissuasão mínima no Atlântico Sul. Depois, precificar cada missão e elencar prioridades (submarino ou satélite? drone ou novo fuzil?). Terceiro, vincular o gasto a metas auditáveis, com transparência que permita ao cidadão saber quantas horas de voo efetivas ganhou cada piloto ou quantas lanchas patrulham o Rio Madeira. Só assim R$ 133 bilhões deixarão de ser cifra de vitrine.

Caso contrário, continuaremos alimentando a ficção de que “o Brasil é grande demais para ser ameaçado” até o dia em que descobrirmos, atônitos, que não se faz soberania com discurso. Pior: talvez descubramos tarde demais, quando percebermos que o navio da história zarpou e nossos marinheiros, coitados, ficaram em terra, contemplando o casco ao longe.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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