Retórica antiterrorismo pode justificar ataques militares à América Latina, alerta Celso Amorim
Assessor especial de Lula diz que o mundo vive “desordem total” e teme que discurso dos EUA contra ‘narcoterrorismo’ amplie tensões na região
247 - Em meio ao agravamento das tensões entre os Estados Unidos e a Venezuela, o assessor especial para assuntos internacionais da Presidência da República, Celso Amorim, fez um alerta sobre os riscos de novos conflitos no continente sul-americano. Em entrevista ao O Globo, o ex-chanceler afirmou que o cenário mundial atravessa um momento de “desordem total”, e advertiu que o discurso antiterrorismo pode abrir brechas para intervenções militares indevidas.
Desde a semana passada, a oposição vem tentando emplacar o PL antiterrorismo, que tem como objetivo equiparar organizações como o PCC e o Comando Vermelho a organizações terroristas. No entanto, o governo federal tentar conter a iniciativa e iniciou uma ofensiva para aprovar o PL antifacção, que propõe mudanças na Lei de Execuções Penais e na Lei de Organizações Criminosas.
Amorim relatou que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva manteve recentemente duas boas conversas — uma por telefone e outra presencial — com o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. No entanto, o diplomata ponderou que “o problema vai além disso”.
“O mundo está em desordem total. Essa divisão entre narcoterrorismo e outros rótulos pode justificar ataques militares que, de outra forma, não ocorreriam. Tudo isso é muito preocupante”, declarou Amorim.
Apesar da tensão internacional, o assessor destacou que o Brasil segue consolidando a democracia internamente e permanece como “um parceiro incontornável” no cenário global. Amorim ressaltou ainda que o país “é uma referência positiva num mundo carente de boas notícias”.
Questionado sobre a possibilidade de o Brasil atuar como mediador no impasse venezuelano, Amorim foi cauteloso: “O Brasil não tem que ser mediador. O presidente Lula ofereceu essa possibilidade para mostrar ao presidente Trump que há saídas. Mas você só pode fazer mediação quando as partes querem.”
O diplomata observou que Caracas demonstra disposição para o diálogo “porque está muito ameaçada”, mas duvida que Washington aceite a proposta. “Não sei se os Estados Unidos querem. O poder lá é muito dividido. O Trump concentra muito, mas recebe influências muito diferentes. Dá a sensação de que o Departamento de Estado está numa linha de enfrentamento.”
Amorim advertiu que qualquer ameaça militar à América do Sul seria grave e disse esperar avanços positivos até o fim do ano. “Desde 1902, não houve nenhuma ameaça de uso direto da força contra a América do Sul. Isso seria gravíssimo.”
O assessor relembrou experiências anteriores de mediação do Brasil, como o Grupo de Amigos da Venezuela, criado no início dos anos 2000, com participação dos Estados Unidos.
“A essência de uma mediação é a mesma: ninguém vai ter tudo o que quer, mas também não vai deixar de ter alguma coisa que quer. Essa é a essência do processo.”
Outro ponto destacado por Amorim foi o trabalho conjunto de Brasil e China no Grupo da Paz, sediado em Nova York, que busca avançar nas negociações para encerrar a guerra entre Rússia e Ucrânia. O grupo reafirmou que “a paz é indivisível”.
“Você não pode pensar que vai ter paz na Ucrânia e, ao mesmo tempo, uma guerra ou um tipo de ataque na América do Sul. Tudo isso se comunica, tudo isso se contamina. Eu estou muito preocupado com tudo isso.”
O documento do grupo propõe um cessar-fogo imediato na Ucrânia e medidas para conter a proliferação de armas de destruição em massa.
“Os russos estavam aceitando a ideia de um cessar-fogo imediato. Mas é preciso garantir que ele não seja usado apenas para rearmar um lado.”
Ao comentar o cenário do Oriente Médio, Amorim afirmou que ainda mantém esperança em uma solução de dois Estados, Israel e Palestina, embora reconheça as dificuldades.
A preocupação do diplomata cresce diante da reativação da base militar de Roosevelt Roads, em Porto Rico, desativada desde 2004. O local, que abrigava a maior instalação da Marinha americana fora dos EUA, voltou a receber aviões de guerra de última geração. Fontes militares apontam que o movimento faz parte dos preparativos de Washington para uma possível operação direta contra a Venezuela.
Nesta segunda-feira, o presidente Donald Trump declarou que “os dias de Nicolás Maduro estão contados”, embora tenha negado planos de guerra aberta com o país vizinho. Enquanto isso, o governo americano amplia sua ofensiva contra cartéis de drogas latino-americanos, agora classificados como organizações terroristas, e utiliza pequenas ilhas caribenhas como apoio logístico para suas operações.


