De São Paulo a Moscou, a gentrificação invade bairros que um dia abrigaram a classe operária
Jornalista Laís Gouveia está em Moscou e relata algumas transformações urbanas no local
Por Laís Gouveia, de Moscou, para o 247 — Basta dar uma volta pela região de Proletarskaya, em Moscou, para perceber que famílias de alto padrão hoje ocupam os charmosos prédios de até cinco andares, padronizados e bem preservados.
Crianças impecavelmente vestidas circulam por playgrounds e quadras de basquete limpas. Nenhuma ponta de cigarro no chão — apenas folhas em tons de marrom, amarelo e verde-musgo, típicas do outono europeu, cobrem o concreto.
O relato poderia descrever qualquer bairro de classe média alta do Velho Continente, não fosse um detalhe curioso: até 1991, esse cenário abrigava famílias operárias em apartamentos de dois quartos e, no máximo, 55 m². O primeiro conjunto foi construído em 1925, um ano após a morte de Lênin. Outros surgiram nas eras de Stalin e Kruschev — todos praticamente gratuitos para o povo.

A aquisição dos imóveis funcionava de forma simples. O morador podia entrar em um tipo de consórcio, contribuindo com um valor simbólico mensal para receber o apartamento mais rápido, ou aguardar na fila até obter as chaves. O Estado garantia todo o processo. Na União Soviética, todo cidadão tinha direito a um teto.
De lá para cá, muita coisa mudou — especialmente por um fator essencial: a localização. O bairro está no centro de Moscou, próximo de todos os serviços e com perto do rio que corta a cidade. Quem não gostaria de morar perto do trabalho e das comodidades da metrópole? Assim, Proletarskaya, região que carrega o “proletário” no nome, foi se transformando. Um apartamento em um desses conjuntos está avaliado em — sente-se, por favor — 20 milhões de rublos, ou cerca de 250 mil dólares. Um pequeno imóvel em Moscou por essa fortuna. Algo cada vez mais comum também no Brasil, onde “estúdios” (nome refinado para antigas kitnets) podem custar até R$ 1 milhão por 30 m².
E não há como falar desse processo sem mencionar a gentrificação — fenômeno urbano que transforma bairros populares em áreas valorizadas, alterando o perfil social das grandes capitais do mundo. Cidades como Moscou, Nova York, Londres, São Paulo e Berlim enfrentam um processo acelerado de expulsão de moradores de baixa renda, impulsionado pela especulação imobiliária e pela chegada de novos empreendimentos voltados às classes médias e altas. O resultado é o aumento do custo de vida, a perda da identidade cultural e a homogeneização dos espaços urbanos, com antigos centros de diversidade cedendo lugar a cafés gourmet, condomínios de luxo e escritórios de startups.
Os antigos moradores, atraídos pelo alto valor de venda ou incapazes de acompanhar o novo padrão de consumo, acabam vendendo seus imóveis. Se antes o seu Zé tomava o pingado às sete da manhã na padoca do seu Freitas e anotava fiado para pagar no fim do mês, hoje encontra uma padaria gourmet com cardápio QR CODE, que oferece omelete de galinhas livres e leite de amêndoas, por R$ 80 a “experiência gastronômica”. Assim, o bairro perde também sua identidade. Sem saída, a população mais vulnerável é empurrada para as periferias, e a gentrificação vence: transforma a cidade, que deveria acolher todas as classes sociais, em um retrato monótono de Starbucks, patinetes elétricos e personagens blasés.
Algo semelhante ocorre no ícone da arquitetura paulista, o Edifício Copan, no centro de São Paulo. Projetado pelo arquiteto comunista Oscar Niemeyer, o prédio foi concebido para abrigar moradores de diferentes perfis socioeconômicos — com apartamentos grandes e pequenos — e democratizar o acesso à moradia no coração da cidade. Hoje, porém, um apartamento de 28 m² não sai por menos de R$ 3 mil de aluguel, em um país cujo salário mínimo é de R$ 1.518.
Como Lênin ou Niemeyer, se vivos, reagiriam a tais transformações?