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A experiência da vila Nanjie e as possibilidades do desenvolvimento socialista na China atual

Sucessos da economia coletiva sob a reforma e abertura

Praça O Oriente é Vermelho, estátua de Mao Tsé-tung (Foto: Rafael Zerbetto)

Por Gabriel Martinez (*) - Com o início da reforma, a República Popular da China entra em um novo período histórico de seu desenvolvimento. A partir de 1978, o país passou a priorizar um modelo de desenvolvimento com características bastante particulares daquelas que vigoraram no período anterior (1949–1978). A partir de então, o país passou a enfatizar o crescimento da economia privada e, de maneira gradual, desmantelou o sistema de comunas populares, que foi implementado ao longo dos primeiros 30 anos da construção do socialismo (1949–1976).

Logo se consolidou uma nova estrutura econômica em que o setor estatal e público perdeu progressivamente sua posição dominante, especialmente em termos quantitativos, enquanto “múltiplas formas de propriedade” passaram a ser promovidas e incentivadas. Essa nova orientação política resultou no surgimento da propriedade privada capitalista e da formação de uma economia de mercado sob controle do Partido Comunista, fato que contribuiu para intensificar as contradições de classe, a perda da posição social dos trabalhadores e uma série de problemas característicos das sociedades capitalistas. Os chineses passaram então a teorizar sobre o “socialismo com características chinesas”.

Mesmo nesse contexto, algumas experiências locais de desenvolvimento e fortalecimento da economia pública e coletiva sobreviveram e muitas até prosperaram ao ponto de terem se transformado em verdadeiros modelos que influenciaram em grande medida o debate nacional sobre a construção de novas áreas rurais socialistas. Em uma época em que muito se fala sobre realizar a “prosperidade comum”, é de extrema importância prestarmos atenção nessas experiências. Entre as vilas coletivas que ainda existem na China, o exemplo mais emblemático e relevante é o de Nanjie, que será apresentado e discutido no presente artigo.

O contexto histórico da construção econômica da vila de Nanjie

Iniciada em 1978, uma política de reforma e abertura teve seu marco inicial nas áreas rurais. Oficialmente, o Partido Comunista da China considera que a experiência que deu início às reformas no campo foi na vila de Xiaogang, localizada na província de Anhui. Na época, um grupo de 18 camponeses assinou um “documento secreto” em que concordavam em violar as leis vigentes, implementando de forma clandestina um modelo de produção e distribuição baseado na divisão de lotes de terras familiares, os quais poderiam ser explorados individualmente pelas famílias camponesas. Esse modelo, posteriormente, seria implementado em outros lugares, convertendo-se no modelo básico para as reformas nas regiões rurais no período inicial das reformas. Esse episódio ilustra as dificuldades e os desafios para o estabelecimento das relações de produção socialista frente às tendências das pequenas burguesas dos camponeses em um grande país rural como a China.

Nanjie é uma vila localizada na cidade de Luohe, província de Henan. Ela abriga cerca de 3.000 moradores permanentes, com uma população total de cerca de 13.000 habitantes (incluindo trabalhadores migrantes e demais funcionários das empresas locais). É um dos raros casos de desenvolvimento rural que seguiram um caminho diametralmente oposto ao de Xiaogang. A experiência de Nanjie é frequentemente retratada pela imprensa burguesa como a “última vila maoísta da China”. Isso ocorre pelo fato de Nanjie ter preservado e impulsionado a propriedade coletiva rural e ter o seu desenvolvimento centrado na defesa e no desenvolvimento da propriedade pública.

É facto que, na China actual, exemplos como o de Nanjie representam abordagens à regra, num contexto em que a economia privada ganha cada vez mais força e influência, apesar de ela não ser a única vila a ainda adoptar um modelo baseado na economia colectiva.

A princípio, no início das reformas, Nanjie também buscou adotar o modelo de responsabilidade familiar, seguindo o exemplo do que estava sendo feito em toda a China. Especialmente após a realização da Terceira Sessão Plenária do 11° Comitê Central do Partido Comunista da China, Nanjie também passou a promover o crescimento da propriedade individual e privada. [1] No entanto, tais incentivos e medidas logo mostrariam os seus resultados práticos: queda nos índices de produção, exclusão das condições de vida e surgimento da aparência da polarização social.

Por ser uma vila localizada próxima da cidade, os camponeses de Nanjie, historicamente, desenvolveram uma certa tradição comercial. Com o desmantelamento do antigo sistema coletivo das comunidades populares, logo os camponeses abandonaram suas atividades rurais para se dedicarem a atividades comerciais dos mais variados tipos. Nessa época, após o início de tais mudanças, ressurgiram os vendedores ambulantes, comerciantes de alimentos e cigarros, trabalhadores migrantes e pessoas dispostas a abrir fábricas privadas. Muitos camponeses também passaram a arrendar a terra para pais e amigos; em alguns casos, cheguei a abandonar completamente a terra. De acordo com dados fornecidos pelo comitê do Partido em Nanjie, em 1985, a produção anual de grãos caiu para pouco mais de 3,75 toneladas por hectare, com a agricultura “entrando em declínio generalizado”. [2]

Diante desses problemas, a vila e os habitantes de Nanjie reagiram de maneira bem diferente do que poderiam sugerir o senso comum. A vila não aprofundou as reformas em um sentido favorável à propriedade privada e o comitê local do Partido apostou no caminho da retomada da coletivização. Em 1986, o comitê do Partido Comunista em Nanjie publicou um documento destinado à população que expressava o seguinte conteúdo:

1) Aqueles com capacidade para cultivar suas terras devem, antes de mais nada, cuidar bem de seus campos. Só então você poderá se dedicar ao comércio ou trabalho externo. Caso contrário, a vila teria o direito de intervir. Era proibido arrendar as terras contratadas a pessoas de fora ou abandoná-las.

2) Aqueles que, por razões especiais, não poderiam mais cuidar de seus terrenos, poderiam enviar um pedido formal ao comitê do vilarejo. Após avaliação e aprovação, suas terras seriam devolvidas ao coletivo, e o moinho do vilarejo se carregaria de garantir o fornecimento de farinha para essas famílias. [3]

Após publicar o comunicado, 300 moradores solicitaram a devolução das terras, que retornaram a serem administrados coletivamente pela vila de Nanjie. Durante o curto período em que Nanjie experimentou o “caminho de Xiaogang”, além da descoletivização, a vila também entregou à administração privada suas duas pequenas fábricas (de tijolos e farinha), o que experimentou na intensificação das contradições de classe e na proteção da posição dirigente do Partido. Como revela o livro A Luz do Ideal , preparado sob supervisão do comitê do Partido Comunista da China em Nanjie:

O resultado da experiência foi o oposto do que era esperado pelos moradores: em vez de benefícios, o que veio foi uma dura lição. Os trabalhadores foram enganados. Além de não receberem salário regularmente, em muitos casos, passou o ano todo sem qualquer pagamento, trabalhando em vão. Enquanto isso, os contratantes indivíduos enriqueceram visivelmente, com alimentação, vestimenta, moradia e posses muito superiores aos moradores comuns. A autoridade do Partido na vila despencou; as frases se espalharam. As cartas de denúncia chegaram ao Comitê Provincial do Partido e ao governo municipal, cartazes de protesto foram apresentados desde a sede do condado até a porta do secretário Wang Hongbin. Os dirigentes de todos os níveis também expressaram sua insatisfação com os quadros da vila. [4]

Os possíveis resultados positivos que as reformas trazidas para Xiaogang e outras regiões rurais não se repetiram em Nanjie. Isso demonstra, na prática, que, para que uma reforma seja bem-sucedida, ela deve considerar não apenas as ordens e diretrizes superiores ou as experiências bem-sucedidas de outras localidades, mas, sobretudo, as condições concretas de cada região.

A coletivização como recompensa para o desenvolvimento das forças produtivas

Os camponeses de Nanjie sentiram na própria pele os efeitos negativos do retorno à produção individual. Liderados pelo Partido Comunista, gradualmente foi possível encontrar um novo caminho para o desenvolvimento. Wang Hongbin, secretário do Partido Comunista em Nanjie, foi uma figura central para esta nova empreitada na pequena vila de Henan. Eleito secretário do comitê do Partido Comunista em 1977, Wang Hongbin começou a se destacar na vida política da vila ainda durante o período final da era Mao Tsé-tung. Na época, chegou a receber títulos de honra como promotor da “limitação do direito burguês” e “promotor da redução das três grandes desigualdades”. [5] De acordo com as próprias reflexões do secretário, os motivos principais por trás da variação da situação política e econômica em Nanjie não eram fato de que o Partido, em vez de usar de maneira adequada o seu papel dirigente para mobilizar as massas em sua luta pela superação da pobreza, apresentou o caminho da economia individual privada, o que acabou “ferindo os sentimentos dos moradores e manchando a convicção das organizações partidárias”. [6]

Com Wang Hongbin à frente, o comitê do Partido Comunista em Nanjie se mobilizou para encontrar uma resposta para os novos problemas da vila. Realizando reuniões de massa junto aos moradores de Nanjie, optou-se pelo caminho da retomada da economia coletiva, com a decisão de realizar, ao mesmo tempo, o trabalho de construção econômica e ideológica, colocando uma “política no posto de comando”. Realizar bem e ao mesmo tempo o trabalho econômico e ideológico era o que o Partido Comunista da China, historicamente, chamou de “agir com as duas mãos e com igual firmeza”. [7] Após a retomada do caminho da coletivização, Nanjie voltou a apresentar índices altos de crescimento econômico. Desde 1984, ano em que voltou a seguir o caminho da economia coletiva, até 1998, as empresas coletivas do vilarejo passaram de 2 para 26, incluindo 4 empresas de capital mistas. Os ativos fixos cresceram de pouco mais de 500 mil yuans para 460 milhões de yuans. O valor da produção das empresas coletivas da vila saltou de 700 mil para 802 milhões de yuans, e os impostos aumentados gradualmente para mais de 17 milhões de yuans.” [8] São números que refutam completamente a visão enraizada de que a economia coletiva correspondia ao atraso e à estagnação.

O Partido Comunista distribuiu um método de educação ideológica baseado na “cultura vermelha” e baseado no Pensamento Mao Tsé-tung. Ao contrário do que acontecia no resto da China após o início da política de reforma e abertura, onde o Pensamento Mao Tsé-tung, em vários níveis, passou a ser demonizado e, não raro, declarado “ultrapassado”, em Nanjie o comitê do Partido Comunista passou a considerar como algo central a formação ideológica dos quadros e militantes do Partido, bem como dos habitantes da vila, de acordo com os princípios da ideologia comunista. As obras clássicas do marxismo-leninismo e os textos de Mao Tsé-tung, passaram a ser impressos em larga escala e colocados à disposição dos moradores da vila. No âmbito da propaganda partidária, referências à história revolucionária da China, ao marxismo-leninismo, bem como os discursos, orientações políticas e canções revolucionárias passaram a fazer parte do cotidiano de Nanjie.

Formas superiores de relação entre quadros e massas: o “espírito 250”

Consolidado o caminho da coletivização dos meios de produção básicos da vila, o Partido Comunista em Nanjie foi desenvolvendo novas formas de relação entre os quadros e as massas. Um dos grandes problemas e desafios trazidos pela política de reforma e abertura foi a perda da reputação das organizações partidárias. Com a reintrodução da economia de mercado em nível nacional, o entendimento de que o Partido Comunista poderia ser um trampolim para a ascensão social virou algo comum. Com isso, as características do burocratismo em toda a China se converteram em um problema extremamente grave, sendo um dos fatores responsáveis ​​pelo aumento da insatisfação popular que culminou nos protestos da década de 80. Isso trouxe consequências para a causa do socialismo e do comunismo na China. Nanjie não ficou imune a essa especificidade.

No período inicial das reformas, quando Nanjie também decidiu seguir o “caminho de Xiaogang”, muito rapidamente as relações entre os quadros e as massas se deterioraram. De acordo com o marxismo-leninismo, os quadros desempenham papel decisivo na construção do socialismo. A maneira como eles realizam seu trabalho e se relacionam com o povo é um fator que pode determinar o sucesso ou o fracasso de um determinado empreendimento. Se os quadros se envolverem em atividades econômicas transferidas para obtenção de lucro e benefício pessoal, as massas certamente passarão a olhar para o partido e seus representantes com um olhar de desconfiança. Caso se dê livre vazão a esse tipo de comportamento, o caráter do Partido se dilui, correndo o risco de degenerar-se em algo hostil ao povo. Levando essas questões em consideração, Wang Hongbin, corretamente, observou que a política iniciada pelo Comitê Central do Partido Comunista, incentiva a promoção do enriquecimento das pessoas — lembremos do slogan “enriquecer é glorioso” — não pode significar que “os membros do Partido são os primeiros que devem enriquecer”. O Partido em Nanjie, gradualmente, foi estabelecendo um sistema de administração de quadros que levava a sério o princípio de “servir ao povo”, aplicando na prática a linha de massas, desenvolvendo o chamado espírito “二百五 (èr bǎi wǔ), que significa “250”.

Wang Hongbin, secretário do comitê do Partido Comunista da China em Nanjie, foi o principal defensor da adoção do chamado “espírito 250”. Na China, o termo “250” carrega uma conotação pejorativa, sendo frequentemente usado para descrever alguém como “idiota”, “estúido” ou “ingênuo”, muitas vezes em tom ofensivo. No entanto, em Nanjie, essa expressão passou a ter um significado completamente diferente, representando “coragem”, “ousadia” e espírito de dedicação ao coletivo. A iniciativa de utilizar o termo “250” como um lema político e ideológico partiu do próprio Wang Hongbin, com base em sua vivência pessoal. No final da década de 70, antes de ser eleito secretário do Partido Comunista em Nanjie, Wang recebeu a oportunidade de ser transferido para uma fábrica na cidade, onde atuaria no setor do almoxarifado. Dadas as condições da China na época, para um camponês, trabalhar na cidade era visto como uma verdadeira chance de ascensão social. Contudo, Wang Hongbin não se adaptou à nova função, sentindo que o trabalho que desempenhava tinha um pouco de significado. Para ele, a vida ao lado de seus companheiros no campo era muito mais valiosa — era tudo o que desejava estar, contribuindo com a construção coletiva do socialismo.

Ao retornar para Nanjie, recebeu críticas de seus familiares e foi alvo de zombarias por parte dos amigos. Muitos o chamaram de “250”, isto é, um tolo. Mas, para Wang, era justamente esse tipo de espírito que os comunistas deveriam cultivar e promover. Afinal, nas sociedades de classes — e no socialismo ainda há classes e luta de classes — não são aqueles que se dedicam a uma causa comum frequentemente tachados de “ingênuos”, “tolos” ou “idiotas”? Dando um novo significado ao termo “250”, o Partido começou a divulgar o “espírito 250”, estimulando e promovendo o espírito de sacrifício e dedicação à causa coletiva. Fazer coisas “tolas” passou a ser considerado uma exigência e um modelo para os membros do Partido. [9]

Entre as coisas “tolas” realizadas pela direção do Partido em Nanjie, está o estabelecimento de um regime de renovação para os membros da equipe partidária local que não ultrapassa os 250 yuans mensais, regra válida também para Wang Hongbin. A justificativa para a adoção de uma medida de tal natureza é, não apenas na própria experiência do Partido Comunista em Nanjie, mas também na experiência histórica do movimento operário e da construção do socialismo em escala internacional. Alguns comentaristas e estudiosos chineses chegam a comparar tal medida com o exemplo da Comuna de Paris. Como sabemos, durante uma curta experiência da Comuna de Paris, em 1871, uma das medidas impostas pelos communards foi igualar o salário dos membros e funcionários da Comuna ao nível do salário dos operários. Como destaca Marx:

Primeiro, ela [a Comuna] ocupou todas as cargas — administrativas, judiciais e educacionais — por meio de eleição pelo voto de todos os envolvidos, dando a estes o direito de demitir os eleitos a qualquer momento. Segundo, ela pagava a cada servidor, de alto ou baixo escalonamento, apenas um salário igual aos outros trabalhadores. O salário mais alto era de 6 mil francos. [10]

A comparação entre essa medida aplicada por Nanjiecun e o exemplo da Comuna de Paris é bastante válida, com a diferença de que, no caso de Nanjiecun, a direção do Partido Comunista recebe não um salário igual ao dos operários, mas inferior. [11] Evidentemente, tal medida é constantemente alvo de ridicularização e descrédito por muitos analistas, dentro e fora da China, mas ela contribui para explicar, em certa medida, o grande grau de influência, prestígio e confiança que a direção do Partido goza entre os habitantes de Nanjiecun. Trata-se de uma das formas que o Partido Comunista encontrou de manter os seus quadros principais com os “pés no chão” e fortalecer a sua capacidade de integração junto às massas.

Fortalecimento da economia coletiva e o modo de distribuição socialista em nível de vila

Em 1986, Nanjie distribuiu um novo tipo de sistema de distribuição baseado no fornecido coletivo de benefícios básicos para a população. Mesmo ainda tendo um déficit econômico básico, a vila passou a garantir aos seus moradores uma ampla gama de serviços sociais:

De 1986 a 1994, os itens de bem-estar passaram do fornecimento gratuito de água e eletricidade para 14 itens, incluindo o gás, óleo de cozinha, farinha, alimentos especiais em feriados, educação gratuita até a universidade e custeio coletivo de atividades culturais, seguro pessoal, vacinação, despesas médicas, planejamento familiar, impostos agrícolas etc.” [12]

Essas medidas também foram muito importantes para consolidar o prestígio da direção do Partido em Nanjie entre a população local. Eles representaram um enorme progresso caso comparado ao que estava acontecendo em outras regiões da China, onde a aplicação de reformas, não relatada, foi acompanhada pelo corte ou diminuição dos benefícios fornecidos pelo Estado e pelas unidades de trabalho. A direção do Partido em Nanjie via que o sistema de distribuição baseado no conjunto coletivo era uma medida eficiente para combater as desigualdades e a pobreza, bem como uma forma de aliviar a tensão e os conflitos sociais. Na medida em que a vila desenvolvia suas forças produtivas, o Partido buscava fortalecer o mecanismo de distribuição baseado no adequado, ampliando seu escopo de atuação. A partir de 1993, Nanjie iniciou um edifício de prédios residenciais modernos, com apartamentos e casas de até 92m², totalmente mobiliados (sofá, cama, guarda-roupa, ar-condicionado, televisão etc) distribuídos gratuitamente entre a população local. No âmbito da alimentação, a vila também passou a fornecê-la gratuitamente, através dos seus restaurantes coletivos, onde os habitantes da vilarejo podem fazer as suas refeições diárias, ainda que não seja obrigatória a sua utilização. [13]

Esse modo de distribuição aplicado em Nanjie, com o passar dos anos, só se fortaleceu. Atualmente, além de todos esses benefícios apresentados no parágrafo acima, a vila também oferece gratuitamente saúde e educação. O hospital e os postos de saúde se encarregam de prestar o atendimento de saúde básico à população; caso haja necessidade de realização de tratamento especializado em locais com mais estrutura, não importa em qual cidade da China, as despesas são cobertas integralmente por Nanjiecun, mesmo em caso de cirurgias e tratamentos mais caros. Na educação, os habitantes que foram aceitos nas universidades chinesas podem estudar com as despesas pagas pela vila, além de receberem subsídios mensais. O mesmo vale caso preciso estudar no exterior.

É importante destacar que o sistema de distribuição vigente na vila não rejeita o sistema de remuneração. O entendimento da direção do Partido em Nanjie é de que, pelo fato do desenvolvimento das forças produtivas da vila ainda não ser muito elevado, é necessário manter a existência dos atrasos, aplicando o método de distribuição baseado no princípio “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo o seu trabalho”. Nesse sentido, a vila distribuiu um sistema que combina o pagamento de salário com o pacote coletivo de serviços e benefícios sociais pelo Estado, dando ênfase ao último, em uma relação 30%-70%. [14]

De acordo com o secretário Wang Hongbin, a adoção do sistema “salário + fornecido coletivo” resulta de dois fatores principais:

1) pelo fato de a China estar na fase do socialismo, o nível de consciência dos habitantes ainda possui uma série de limitações ideológicas, sendo assim, é importante que, através do princípio de “quem trabalha mais ganha mais”, se estabeleça um determinado ambiente social que compensa aqueles que se destacam mais com o coletivo, ao passo que se pressiona os elementos mais sustentados do ponto de vista ideológico;

2) com o fornecimento coletivo, as pessoas têm a oportunidade de experienciar, concretamente, o que seria o modo de distribuição comunista (mesmo que de forma embrionária), o que exerce uma importante influência ideológica e estimula os trabalhadores a se dedicarem de maneira mais ativa à causa coletiva, transmitindo a influência das ideias egoístas; isso ajuda, em grande medida, no trabalho de construção da “civilização espiritual socialista”.

Neste sentido, a existência do salário corresponde ao fato de que a sociedade chinesa — e também da própria Nanjiecun — ainda está na etapa primária do socialismo; o grupo coletivo, então, estaria em consonância com o caráter comunista da sociedade, direcionando a direção pela qual o desenvolvimento econômico e social deverá se orientar. O resultado do modelo de distribuição baseado no “salário + fornecido coletivo” é um dos traços distintivos de Nanjiecun. O seu sucesso, mesmo que em um pequeno vilarejo, mostra para toda a China a previsão e a superioridade do modo de distribuição que toma a propriedade pública dos meios de produção como base, bem como apresenta uma forma criativa de aplicar o princípio de “limitação do direito burguês” na nova era, podendo servir como uma importante referência para a realização da prosperidade comum.

Nanjie e a política de reforma e abertura: construindo uma “comunidade comunista” na nova era

É bastante evidente que o boato feito por Nanjie em seu processo de desenvolvimento econômico possui características bastante distintas daquelas aplicadas, a partir de 1978, no restante da China. Enquanto em outras áreas prevaleceu a tendência de descoletivização, em Nanjie, a vila optou por promover o seu desenvolvimento através do fortalecimento da economia coletiva e, consequentemente, do setor público da economia. A comissão do Partido em Nanjie distribuiu a missão de criar o que chama de “comunistade comunista”: uma pequena comunidade rural que estabelece as bases do socialismo e do comunismo em nível local.

No começo dos anos 90, o debate político e econômico da China estava em efervescência. O cenário internacional foi marcado pela restauração do capitalismo na União Soviética e nos países do Leste Europeu; na China, acompanhando os protestos do final da década de 80, aprofundou-se o debate sobre qual caminho as reformas deveriam seguir no país, ao mesmo tempo em que crescia a influência ideológica do neoliberalismo dentro da sociedade. Em 1992, com a viagem de Deng Xiaoping ao sul, criaram-se as condições políticas para uma nova rodada de reformas, o que acarretou na interrupção do debate sobre o “caráter das reformas” — se elas fossem capitalistas ou socialistas –, o debate foi promovido em grande medida pelo que muitos consideram ser a “esquerda” dentro do Partido Comunista da China na época. [15] Nacionalmente, o Partido Comunista da China estabelece como meta principal criar uma “economia de mercado socialista” e permitir que o setor privado da economia se expanda de um modo mais acelerado

(*) Gabriel Martinez é mestre em Filosofia pela Universidade do Povo de Pequim. Este artigo foi publicado originalmente no Medium

Notas

[1] A Terceira Sessão Plenária do 11º Comitê Central do Partido Comunista da China foi realizada entre 18 e 22 de dezembro de 1978. Foi a partir da realização dessa sessão que o Partido Comunista da China anunciou o início da política de reforma e abertura, com foco na promoção “modernização socialista”.

[2] NANJIECUN Bianxiezu. 理想之光 [A Luz do Ideal], Volume 1, Pequim: Editora da Escola Central do Partido Comunista da China, [1998]. Pág. 3

[3] Ibid.

[4] Ibid., pág. 4

[5] Na Crítica do Programa de Gotha , Marx apresentou a ideia de que, na fase inferior do comunismo (o socialismo), vigora o princípio de distribuição baseado na quantidade de trabalho aportado. No entanto, Marx observa que essa forma de distribuição baseada no trabalho ainda era uma forma de “direito burguês”, pois ela ainda existe tendo como hipótese as diferenças reais entre os indivíduos. Na China, Mao Tsé-tung chamou a atenção para o fato de que, sob o socialismo, o direito burguês continua existindo, sendo uma fonte importante para o surgimento do revisionismo e para a restauração capitalista. Por isso, seu grau de influência e extensão deve ser restringido pelo poder proletário, por meio da mobilização das massas e de medidas políticas de caráter popular. Conferir: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Crítica do Programa de Gotha . Lisboa: Editorial Avante!, 1982. v. 5–30. A informação de que Wang Hongbin foi nomeado promotor-modelo da “limitação do direito burguês” pode ser encontrada em: WANG, Hongbin. Relatório de intervenção do secretário do Partido Comunista da China em Nanjiecun (南街村党委书记王宏斌汇报材料). 2004. Vídeo. Disponível em: https://www.szhgh.com/Article/red-china/redman/513.html

[6] NANJIECUN, 理想之光 [A Luz do Ideal], p. 4

[7] O termo “agir com as duas mãos e com igual firmeza” (两手抓,两手都要硬) foi cunhado por Deng Xiaoping e faz referência ao fato de que, para realizar de maneira exitosa a modernização socialista do país, é necessário promover a construção da civilização material, pelo desenvolvimento das forças produtivas, e ao mesmo tempo desenvolver a construção da civilização espiritual.

[8] NANJIECUN, 理想之光 [A Luz do Ideal], p. 2

[9]XIANYI, Chen. 南街村的党员干部为什么都甘愿做“二百五”? [ Por que os quadros e membros do Partido em Nanjiecun estão todos satisfeitos a ser “idiotas” (250)?] , 红色文化网, 11 de junho de 2024, https://www.hswh.org.cn/wzzx/sdjl/nm/2024-06-11/88465.html .[10] MARX, Carlos. A Guerra Civil na França . São Paulo: Boitempo, 2011. (Coleção Marx-Engels). pág. 196

[11] Em Nanjiecun, a atualização dos quadros e da direção do Partido Comunista não ultrapassa os 250 yuans, valor que faz referência ao “espírito 250”. NANJIECUN, 理想之光 [A Luz do Ideal], p. 35.

[12] Ibid., pág. 12

[13] Ibid.

[14] “南街村体质” [Sistema de Nanjiecun], 南街村村委办公室, acesso em: http://www.nanjiecun.cn/about.asp?id=5[15] No final da década de 1980 e início da década de 1990, um setor importante do Partido Comunista da China promove uma discussão sobre o caráter das reformas no país. Sem negar a necessidade de realizar mudanças no sistema econômico, o debate buscou sistematizar os problemas surgidos na primeira fase das reformas, enfatizando que uma política de reforma e abertura deveria ser compreendida como uma forma de “autoaperfeiçoamento” do sistema político e econômico do socialismo. Durante sua “viagem ao Sul”, Deng Xiaoping fez críticas ao debate sobre o caráter das reformas, considerando inútil discutir se algo era “socialista” ou “capitalista”. Durante essa viagem, Deng Xiaoping também emitiu a opinião de que o Partido Comunista da China deveria manter-se em guarda, prioritariamente, contra os “desvios de esquerda”, considerando-os mais perigosos e graves do que os “desvios de direita”. Conferir: XIAOPING, Deng. Obras Selecionadas de Deng Xiaoping , vol. III (Pequim: Foreign Language Press, 1994), “Trechos de palestras proferidas em Wuchang, Shenzhen, Zhuhai e Xangai”. 37–387.

[16] NANJIECUN Bianxiezu. 理想之光 [A Luz do Ideal], Volume 3, Pequim: Editora da Escola Central do Partido Comunista da China, [1998], p. 1

[17] Ibid., p.3

[18] Ibid., págs. 26–27

[19] Com o desenvolvimento e modernização do vilarejo, Nanjie criou um grupo empresarial denominado “Henan Nanjiecun Group Co., LTD”. Trata-se de um grande conglomerado de natureza coletiva, que reúne atualmente 28 empresas subordinadas. Dessas, 8 são joint ventures — sendo 5 em parceria sino-estrangeira e 3 fruto de cooperação nacional. Todas as empresas do grupo são administradas pelo comitê do Partido Comunista, e todo o lucro produzido por elas vai diretamente para um fundo social da vila, que financia o desenvolvimento contínuo da economia coletiva, garantindo a realização de sua reprodução ampliada.

Referências Bibliográficas

MARX, Karl. A Guerra Civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011. (Coleção Marx-Engels).

MARX, Carlos; ENGELS, Friedrich. Crítica do Programa de Gotha. Lisboa: Editorial Avante!, 1982. v. 5–30.

NANJIECUN Bianxiezu. 理想之光 [A Luz do Ideal], Volumes 1 e 3. Pequim: Editora da Escola Central do Partido Comunista da China, 1998.

XIAOPING, Deng. Obras Selecionadas de Deng Xiaoping, Vol. III. Pequim: Editora em Língua Estrangeira, 1994. “Trechos de Palestras Proferidas em Wuchang, Shenzhen, Zhuhai e Xangai”, p. 37–387.

XIANYI, Chen. 南街村的党员干部为什么都甘愿做“二百五”? [Por que os quadros e membros do Partido em Nanjiecun estão todos satisfeitos a serem “idiotas” (250)?]. 红色文化网, 11 de junho de 2024. Disponível em: https://www.hswh.org.cn/wzzx/sdjl/nm/2024-06-11/88465.html

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