“O que se propõe hoje não é anistia, é anestesia”, diz juiz do caso Herzog
Márcio Moraes que condenou a União no caso Vladimir Herzog relembra sua sentença histórica e critica tentativas de apagar a memória da ditadura
247 - O desembargador aposentado Márcio Moraes, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, falou sobre os riscos de retrocesso democrático no Brasil, durante sua participação no programa Direito e Democracia, promovido pela Academia Paulista de Direito e transmitido pela TV 247. Conhecido por ter sido o juiz que condenou a União no emblemático caso Vladimir Herzog, Márcio afirmou: “O que se pretende hoje é uma injeção de anestesia na justiça e na nossa coletividade. Para que ela não sinta o que passou... e não sinta o que pode vir por aí”.
O programa, conduzido pelo desembargador e jurista Alfredo Attié, teve como tema “Resistência jurídica e mudança política” e explorou as relações entre o direito e a democracia em tempos de crise. Márcio Moraes, formado na tradicional Faculdade de Direito da USP (Largo de São Francisco), recordou sua trajetória acadêmica e profissional, destacando o impacto que o assassinato de Herzog teve em sua formação cívica e ética:
“Quando vi a notícia da morte de Herzog, percebi que estava sendo um inocente útil. Foi ali que acordei para o pesadelo da ditadura”, disse ele.
Em 1978, ainda sob o vigor do AI-5, Moraes proferiu a sentença que reconheceu a responsabilidade da União pela morte do jornalista Vladimir Herzog, desmentindo oficialmente a versão de suicídio divulgada pelo regime militar. O magistrado relembrou o peso dessa decisão e sua escolha consciente de registrar a resistência do Judiciário.
“Escolhi dar a sentença na vigência do AI-5 porque queria registrar o Judiciário como o poder da resistência. E acho que fui feliz nisso, porque o Judiciário é, até hoje, o poder que resiste na democracia.”
Ele também destacou o papel de seu mentor, o juiz João Gomes Martins Filho, afastado arbitrariamente do caso antes da decisão, e contou que sentiu medo de represálias: “Evitei falar na época. Não queria entrevistas nem manchetes. Tinha medo de atentado, medo pela minha família”.
Crítica à impunidade e à anistia
Ao refletir sobre as consequências de sua sentença, Márcio Moraes lamentou que o Estado brasileiro jamais tenha cumprido integralmente a decisão.
“A minha sentença não foi cumprida. A determinação de persecução penal nunca se deu. O Supremo, ao manter a validade da Lei da Anistia, cometeu um grande engano.”
Para o magistrado, a anistia de 1979 fere os fundamentos da Constituição e a própria noção de dignidade humana. “Como pode uma lei acobertar a tortura diante da nossa Constituição? Existe algo mais indigno do que a tortura?”
Hoje também psicanalista, Márcio Moraes enfatizou a importância de preservar a memória da ditadura como forma de evitar sua repetição.
“A memória precisa estar presente. O que se viveu naquela época terrível não pode ser esquecido, porque isso influencia nossa judicatura e nossa sociedade. A reverência e a revivência da memória é que me fazem estar presente”.
O desembargador fez um paralelo entre o passado e o presente, alertando para o perigo de uma “anistia disfarçada” às ameaças recentes à democracia.
“Essa anistia que se propõe hoje não é anistia, é anestesia. Uma tentativa de fazer o país esquecer o que sofreu e o que ainda pode voltar a sofrer.”


