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Bustani: “eu não tenho medo de nada”

Ex-diretor da OPAQ relata ameaça de John Bolton, pressões dos EUA e bastidores da tentativa de levar Iraque e Líbia à Convenção de Armas Químicas

Bustani: “eu não tenho medo de nada” (Foto: Brasil247)

247 - Em conversa de fôlego com Hildegard Angel no programa Conversas com Hildegard Angel, da TV 247, o embaixador José Maurício Bustani — primeiro diretor-geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) — reconstrói os bastidores da crise que antecedeu a invasão do Iraque e conta como enfrentou pressões de Washington.

Logo no início, Bustani credita sua trajetória de décadas na diplomacia multilateral às passagens por Moscou, Viena, Londres e Paris, e situa o papel central da OPAQ na verificação global. Ao longo do diálogo com Hildegard Angel, ele narra a escalada política que culminou na sua destituição e descreve a disputa por controle sobre o orçamento e a autonomia técnica da organização.

Segundo Bustani, a Convenção de Armas Químicas nasceu com uma arquitetura inédita no desarmamento: sem privilégios e com inspeções aplicáveis a todos. “A Convenção de Armas Químicas é não discriminatória”, afirma. No seu período à frente da OPAQ, o número de Estados-membros teria saltado de 87 para 145, apoiado por um corpo de 211 inspetores que auditaram instalações em países como Estados Unidos, Rússia, Irã, Índia e Coreia do Sul. O objetivo declarado era duplo: destruir estoques existentes e prevenir reconstituições clandestinas por meio da fiscalização da indústria química.

O ponto de ruptura, relata, veio quando Bagdá e Trípoli se aproximaram da adesão. Bustani diz que, após uma operação bem-sucedida para retirar amostras remanescentes em laboratórios iraquianos, comunicou aos principais membros que a carta de adesão do Iraque “estava a caminho”. A reação, comenta, foi imediata entre aliados de Washington, em um ambiente já inflamado pela retórica que associava o regime de Saddam Hussein aos atentados de 11 de Setembro.

É nesse contexto que ele relata o episódio mais tenso da carreira. “Nós sabemos onde estão seus filhos”, teria dito o então subsecretário de Estado John Bolton em visita ao seu gabinete, numa tentativa de forçá-lo a renunciar. A resposta de Bustani virou a frase-síntese da entrevista: “Eu não tenho medo de nada... Se vocês quiserem, me ponham para fora”. Para o diplomata, a pressão culminou numa conferência extraordinária que, em desacordo com o espírito do tratado, aprovou sua saída do cargo.

Bustani também critica o rumo da OPAQ anos depois da sua gestão, ao recordar a concessão do Prêmio Nobel da Paz (2013) pelo trabalho de desmantelamento do arsenal químico sírio. Segundo ele, inspetores teriam produzido versões técnicas divergentes das conclusões oficiais, apontando interferência política na redação de relatórios. O caso alimentou controvérsias na imprensa internacional e entre ex-integrantes da organização, fortalecendo o debate sobre a blindagem de evidências técnicas contra pressões geopolíticas.

A entrevista percorre ainda a política externa brasileira. Bustani relata negociações estratégicas com a França, comenta a atuação recente do Itamaraty e diz ter recebido apoio popular no Brasil quando vieram à tona as pressões que sofreu. Em outro trecho, avalia a fragilidade decisória da ONU diante do uso recorrente do poder de veto e defende uma reforma ancorada no Sul Global e nos Brics. Ao analisar o cenário nos Estados Unidos, critica agendas associadas ao chamado “Project 2025” e menciona Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos, como símbolo de um ciclo de radicalização que transcende fronteiras.

Há espaço, ainda, para um diagnóstico sobre mídia e redes. Bustani denuncia a homogeneização da cobertura internacional por grandes conglomerados e o papel das plataformas digitais na amplificação de campanhas políticas, defendendo mais correspondentes brasileiros em centros decisórios e o fortalecimento de fontes independentes.

Do início ao fim, a entrevista revela um diplomata que atribui a força do multilateralismo à combinação de regra clara, inspeção técnica e independência institucional. Entre episódios de alta tensão e confrontos com superpotências, a frase-título resume sua postura diante das pressões: “Eu não tenho medo de nada”. Assista: 

 

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