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Regina Zappa

Jornalista, escritora, criadora e apresentadora do Estação Sabiá, da TV 247. Trabalhou mais de 20 anos no Jornal do Brasil

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Veríssimo e o ócio inteligente

Escritor genial, cronista, cartunista, músico, criador de personagens célebres, falou em 2002 sobre a vida, seu ofício e o país

Luis Fernando Verissimo e Regina Zappa (Foto: Divulgação)

“A última coisa que quero que me aconteça é a morte”. A sutileza e a sofisticação do humor foram sempre importantes marcas na trajetória do escritor, humorista, cartunista, tradutor, músico, roteirista e dramaturgo brasileiro Luis Fernando Veríssimo, que acaba de nos deixar, aos 88 anos, depois de um longo tempo de combate ao Parkinson e a sequelas de um AVC. Muitas vezes falava sério: “Eu não entendo como uma pessoa que enxerga o país à sua volta, vive suas desigualdades e sabe a causa das suas misérias pode não ser de esquerda. Ser de esquerda não é uma opção, é uma decorrência.” Mas ele não dispensava a graça, mesmo quando esperavam dele uma resposta formal: “Que livro levaria para uma ilha deserta?” E ele: “O livro: Como construir uma balsa para sair daqui”.

Escritor e cronista genial, humorista implacável, criador de personagens inesquecíveis em suas crônicas (que publicou em jornais como Jornal do Brasil, Zero Hora, O Globo) ou tiras que criava e desenhava (As Cobras, Ed Mort, o Analista de Bagé, a Velhinha de Taubaté), roteirista de programas como TV Pirata e Comédias da Vida Privada, saxofonista apaixonado, Veríssimo era um gênio da escrita, mas um homem de poucas palavras. Tímido e quase sempre muito calado, em 2002 ele quebrou um pouco esse tabu e falou ao extinto site Tix para esta jornalista e para o jornalista Ernesto Soto.

Era impressionante a legião de fãs de Veríssimo. Na Bienal do Rio, sabíamos quando ele chegava por causa da multidão que se formava para acompanhar seus passos pelos estandes e nas filas de autógrafos. Convivi com Veríssimo no Jornal do Brasil e em casa de amigos comuns, como Eliana e Chico Caruso, e com sua mulher Lucia e as filhas Fernanda e Mariana e o filho Pedro. Um homem suave, gentil, de humor e inteligência sofisticadíssimos. Um clarão que nunca se apagará. 

Na entrevista de 2002, se declarou apaixonado por música, sobretudo por jazz, “meio-deprimido” e uma pessoa que nunca tinha planejado ser escritor, talvez por seu filho do grande Érico Veríssimo. Dizia-se “preguiçoso” e que seu grande desejo, já naquela época, era se dedicar, um dia, de corpo e alma, ao ócio inteligente.

A entrevista foi feita no bar do tradicional Hotel Glória, que já não existe, de frente para a Baía de Guanabara, onde ele derrubou dois tabus: o de falar pouco e rir pouco. Era o final do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Seguem abaixo trechos dessa entrevista do começo do século 21:

“Eu sou muito desorganizado, mas tem certos prazos que eu tenho que cumprir que de certa forma estabelecem uma rotina. Tem que mandar matéria até uma certa hora, então isso me enquadra um pouco, mas eu não sou organizado. Às vezes a gente acorda cheio de ideias, cheio de ânimo, outras vezes é difícil sair da cama. Depende muito, varia muito. Não tenho uma rotina certa, a não ser essa estabelecida pelos prazos. E a gente tem que ter pelo menos uma ideia por dia. Quem tem que fazer uma crônica por dia...

“Fiz o contrário. A pessoa normalmente é esquerdista na adolescência e depois vai passando para o outro lado. Comigo aconteceu o contrário. Fui me radicalizando com a idade. E acho que é uma coincidência também porque quando começou o governo Fernando Henrique, comecei a publicar na página de opinião do Jornal do Brasil, que apesar de tudo, é uma página que ainda tem um certo peso. Foi uma coincidência eu começar junto com ele e começar também criticando, talvez isso tenha marcado. Mas não tenho tido problema, nem por parte do jornal. Nunca tive problema de não poder publicar.

“Não sei se acontece com todo mundo, mas comigo acontece. Quanto mais a gente escreve, mais difícil vai ficando. Antigamente eu escrevia muito mais e textos bem maiores do que os de hoje e, no entanto, a lembrança que eu tenho é que a coisa fluía mais do que hoje.

“Eu fiz de tudo. Não me formei em nada, não tenho diploma. Comecei fazendo algumas traduções, depois vim para o Rio, tentei trabalhar no comércio. Fiz várias coisas que não deram certo. Aí como estava recém-casado, minha primeira filha já tinha nascido aqui no Rio – minha mulher Lúcia é carioca – resolvi fazer a coisa sensata: voltei para cassa, para a casa do pai. Não tinha nenhuma perspectiva no Rio. Então me convidaram para fazer uma experiência no jornal, o Zero Hora. Fui e, para mim mesmo, se revelou que eu sabia escrever.

“Inconscientemente acho que havia quase uma certa relutância em achar que eu não ia ser escritor igual a meu pai. Nunca me passou pela cabeça que eu seria escritor.

“Era muito boa (a relação com o pai). Mas nós pouco conversávamos sobre literatura. Mas é claro que o fato de viver numa casa em que o livro era uma coisa importante, ter uma biblioteca, me influenciou desde pequeno, sempre li muito. E li muito começando pelos livros que havia na biblioteca do pai. Tinha de tudo. O que me influenciou muito também foi nossa experiência americana. Meu pai foi para os Estados Unidos pela primeira vez quando eu tinha sete anos. Moramos dois anos lá, meu pai lecionava na Universidade da Califórnia. Depois, fomos de novo, eu tinha 16 anos, fiquei uns quatro anos lá, então a literatura e a cultura americanas me influenciaram bastante. E o pai também era bastante influenciado. Talvez ele tenha sido um dos primeiros escritores brasileiros a escrever num estilo mais anglo-saxônico.

“A segunda vez que fomos para os Estados Unidos, eu já era um apaixonado pelo jazz, gostava muito do Louis Armstrong. Então resolvi que quando chegasse lá ia tocar trompete. Mas no curso que procurei eles não tinham trompete para emprestar, então foi saxofone.

“Acho que tem uma coisa meio misteriosa, que acabamos chamando de inspiração. Mas muita coisa influencia. Se eu durmo bem, por exemplo, no dia seguinte eu penso melhor. Se tenho problema para dormir, o que tenho frequentemente, tenho insônia, aí no dia seguinte o cérebro custa a funcionar.

“Temos que reconhecer que muitas coisas melhoraram. O controle da inflação é altamente positivo. Mas a figura do Fernando Henrique Cardoso é interessante porque simboliza uma espécie de desencanto final. Tínhamos uma certa esperança nessa esquerda que ele representa, nascida da Academia de São Paulo, da atividade política, contra a ditadura. E como ele está se revelando um neoliberal, embora diga que não seja está fazendo um governo neoliberal, dependente completo do capital financeiro internacional. É um desencanto final. Nem essa esperança que a gente tinha está dando resultado. Então qual o caminho que a gente tinha? Ou a gente se radicaliza – e aí, pode ser tanto de esquerda quanto de direita.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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