Valorizar o idoso em uma sociedade etarista que cultua a juventude
Crescimento acelerado da população idosa expõe falhas estruturais, desigualdade e preconceito etarista no país
Por José Reinaldo Carvalho - Em boa hora, o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano foi “Perspectivas acerca do envelhecimento na sociedade brasileira”. Oxalá isto ajude a criar um clima favorável e uma elevação da consciência social para o combate à violação dos direitos da população idosa e ao etarismo.
O Brasil está envelhecendo em um ritmo sem precedentes. Ao que tudo indica, sem preparo suficiente para lidar com as consequências deste processo. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o número de pessoas com 60 anos ou mais saltou de 19,6 milhões em 2010 para mais de 32 milhões em 2022, o equivalente a cerca de 15% da população. Em pouco mais de uma década, o país deverá ter mais idosos do que crianças. Esta transformação demográfica, que nas nações europeias levou mais de um século, está ocorrendo em pouco mais de 30 anos no Brasil, sem que a estrutura social e econômica tenha acompanhado a mesma velocidade.
Trata-se de um fenômeno estrutural e inevitável: a taxa de fecundidade caiu, a expectativa de vida aumentou e o perfil populacional se desloca rapidamente para as faixas etárias mais elevadas. O que deveria ser motivo de celebração, pois viver mais é uma conquista civilizatória, depara-se com uma série de deformações socioeconômicas e psicossociais, tornando-se não um fenômeno característico de pujança social, mas de fragilidade. O país que idolatra a juventude parece não saber o que fazer com sua própria velhice. E no centro deste paradoxo está uma doença social silenciosa e persistente: o etarismo, o preconceito baseado na idade.
Envelhecimento e exclusão
O avanço da longevidade tem efeitos profundos sobre o sistema de saúde, a previdência e o mercado de trabalho. O envelhecimento populacional aumenta a pressão sobre o SUS, que precisa lidar com doenças crônicas e múltiplas, exigindo acompanhamento contínuo e infraestrutura adequada. A Previdência, por sua vez, enfrenta desequilíbrios financeiros.
No mercado de trabalho, a exclusão é brutal. Milhares de idosos são empurrados para a informalidade, enfrentam dificuldades de recolocação e sofrem com a precarização. Muitos sobrevivem com aposentadorias insuficientes, incapazes de cobrir despesas básicas como moradia, alimentação e medicamentos. O resultado é o empobrecimento de uma parcela crescente da população. Não são poucos os que caem na miséria.
Os idosos também são vítimas de invisibilidade. Sua experiência, sabedoria e capacidade de contribuição social são sistematicamente desvalorizadas em nome de uma cultura que exalta a produtividade e a aparência jovem. Em um país onde a juventude é vendida como privilégio, valor e virtude, a velhice acaba sendo tratada como defeito e o envelhecimento como atestado de fracasso individual.
O abismo entre a lei e a realidade
Desde 2003, o Brasil possui uma legislação avançada para a proteção da população idosa: o Estatuto da Pessoa Idosa. O texto garante prioridade no atendimento, assegura benefícios sociais, criminaliza maus-tratos e estabelece o direito a um envelhecimento digno. No papel, trata-se de um marco civilizatório. Na prática, contudo, sua aplicação é desigual e frequentemente ignorada.
A ausência de fiscalização, a falta de orçamento específico e o desconhecimento generalizado sobre os direitos assegurados tornam o Estatuto, em muitos casos, uma promessa vazia. A efetividade da lei depende da vontade política de governos locais e da capacidade de articulação da sociedade civil.
No campo da saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS) é universal, mas enfrenta limitações severas. A falta de profissionais especializados em geriatria, a carência de programas de reabilitação e a dificuldade de acesso a exames e medicamentos afetam diretamente a qualidade de vida dos idosos. Serviços de cuidado de longa duração e políticas de apoio a cuidadores familiares ainda são exceções, restritas a poucas cidades.
A rede de assistência social também revela lacunas. Muitos municípios não possuem centros de convivência, programas de inclusão digital ou espaços de socialização voltados à terceira idade. Isto agrava a solidão, o isolamento e a sensação de abandono que marcam o envelhecer no Brasil.
O etarismo
O etarismo é a face mais cruel deste cenário. Ele se manifesta em gestos cotidianos, piadas, olhares e políticas que marginalizam quem envelhece. Está nas empresas que evitam contratar pessoas acima dos 50 anos, na mídia que retrata o idoso como incapaz, na indústria da beleza que vende juventude como mercadoria e até no discurso médico que identifica o envelhecimento como doença.
Este preconceito tem efeitos devastadores. Mina a autoestima, favorece a depressão, aprofunda o isolamento e desumaniza o envelhecer. Muitos idosos acabam confinados em casa, privados do convívio social e sem perspectiva de reintegração. O resultado é uma velhice solitária, em um país que ainda não aprendeu a valorizar a experiência e o tempo.
Mais do que uma questão cultural, o etarismo é uma forma de exclusão social que reforça desigualdades e fere princípios básicos de cidadania. Ao negar o valor dos mais velhos, a sociedade nega parte de sua própria história e compromete o futuro coletivo.
A urgência de mudar mentalidades e políticas
Superar esta realidade exige mais do que boas intenções: requer uma profunda transformação de mentalidade e ação efetiva do Estado. O combate ao etarismo deve começar pela educação e pela comunicação, com campanhas públicas que mostrem o envelhecimento como uma etapa natural e plena da vida. É preciso desmontar a ideia de que produtividade tem idade e de que o valor de uma pessoa se mede por sua aparência ou capacidade física.
Diante do aumento do número de idosos e das deficiências na promoção de direitos deste segmento populacional, torna-se urgente desenvolver políticas públicas consistentes em fornecer uma adequada assistência médica; proporcionar oportunidades para transmitir suas experiências, bem como para atualizar e renovar seu aprendizado. Aos idosos deve ser assegurada a oportunidade de contribuir com a sociedade. Isto requer a adoção de leis efetivas e a realização de políticas públicas garantidoras de direitos específicos, bem como o amplo envolvimento de toda a sociedade nos esforços para cuidar dos idosos. Por meio de políticas e orientação da opinião pública, o Estado deve empenhar-se na criação de um ambiente social favorável à vida do idoso em todas as dimensões, inclusive a vida associativa, a representação política em distintas esferas e o amplo acesso aos bens culturais. A criação de redes de apoio, a participação em grupos e a reivindicação por seus direitos são formas de construir uma velhice mais ativa e menos solitária.
Nesse sentido, é imperativo fortalecer o SUS para o atendimento geriátrico com foco na atenção integral;criar uma rede de proteção social que inclua centros de convivência, programas de cuidado domiciliar e suporte aos cuidadores familiares; incentivar a inclusão produtiva do idoso, com políticas de emprego e empreendedorismo adaptadas à condição etária.
Também é indispensável assegurar a efetiva implementação do Estatuto da Pessoa Idosa, com orçamento garantido, mecanismos de fiscalização e punições exemplares a quem violar seus princípios. O Estado, a sociedade e as famílias devem compartilhar a responsabilidade pelo cuidado, reconhecendo o envelhecimento como parte essencial da vida humana.
Envelhecer é conquista
A longevidade é uma das maiores vitórias da humanidade. Mas, para que ela não seja vista como fardo, doença ou pecado, o país precisa transformar o modo como enxerga o envelhecer. Um Brasil que aspira ao desenvolvimento e à prosperidade deve ser capaz de oferecer dignidade, autonomia e reconhecimento a todos, independentemente da idade.
Envelhecer não é um desvio nem deformação, mas evolução do ser humano. É um direito, um ciclo da vida que deve ser vivido com plenitude e respeito. Valorizar os idosos é valorizar a própria história nacional e preparar o futuro de um país que, inevitavelmente, será cada vez mais velho, mas pode ser também mais justo, sábio e humano.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



