Trump, quem é você pra derramar meu mungunzá?
‘Donald Trump tenta impor seu gosto amargo à panela dos povos latino-americanos no tabuleiro geopolítico’, escreve Sara Goes
Câmara Cascudo já ensinava que fazer mungunzá é celebrar memória, um rito litúrgico em que cada aroma é portal para a terra. Mas atenção, mungunzá não é canjica, é resistência em cada grão.
No Cariri, o mungunzá salgado (meu preferido) traz milho, feijão, carne de sol, linguiça, toucinho, mocotó, costelinha, cebola, alho e especiarias, identidade concentrada numa panela. Dessalgar a carne, deixar o milho de molho e cuidar do fogo exige paciência. A pressa transforma o prato em mingau sem alma.
Foi esse espírito que Petrúcio Amorim traduziu em pergunta: quem é você pra derramar meu mungunzá? E quem ousa hoje entornar o caldo? Donald Trump, o homem que segue contra a maré, tentando apagar o fogo latino-americano com tarifas, castigos e coerção.
Ao anunciar um tarifaço de 50 por cento com vigência a partir de 1º de agosto, sobre mel, pescado, sucos e café, Trump quis dobrar o Brasil antes mesmo das taxas entrarem em vigor. No Ceará, quinze contêineres com mel e cera de carnaúba pararam no Porto do Pecém. Cerca de mil toneladas de pescado e sucos tiveram exportações suspensas, ameaçando toda a cadeia produtiva do agro nordestino.
No Piauí, o impacto recaiu sobre o mel orgânico produzido por cooperativas do semiárido, fruto de um projeto que valoriza e empodera o sul do Sul Global. Esse mel da caatinga, cultivado por mais de doze mil apicultores, não nasce da monocultura nem do veneno, mas da inteligência coletiva de quem transforma aridez em sustento, e sustento em soberania. Quando importadores americanos perceberam que o custo político e econômico do boicote superava o benefício da chantagem, recuaram e liberaram o mel, embora a incerteza sobre cargas que saiam após 1º de agosto continue no ar.
Trump, quem é você pra derramar meu mungunzá? A resposta veio dos fogões do sertão, dos barquinhos do litoral e das colmeias cooperativas de base, o Nordeste não se curva a castigo coletivo. No Ceará, sucos e pescados agora buscam novos mercados, Europa, Ásia, Oriente Médio, e o consumo interno de mel aumentou durante a safra. A diversificação virou estratégia e horizonte civilizatório
Mas o efeito colateral foi outro. Segundo a pesquisa Atlas/Bloomberg (2.841 entrevistas com amostragem nacional, metodologia RDR, margem de erro de dois pontos percentuais, realizada entre 11 e 13 de julho de 2025), 64% dos brasileiros consideram a taxação injustificada. Para 58%, a medida representa uma ameaça à soberania do Brasil. A maioria aprova a resposta do governo Lula e defende que o país adote retaliações. Trump não convenceu nem como estadista nem como negociante, e sua imagem desaba junto com os contêineres travados nos portos.
O Brasil reagiu. Foi à OMC, prepara retaliações, mobiliza vice-presidente e ministros. Mas a resposta real está na panela, soberania não se decreta, se cozinha. Trump pode jogar pedra, pode tentar derrubar coalhada, mas aqui o milho, o mel e o mungunzá seguem no fogo, apurando resistência.
Trump, quem é você pra derramar meu mungunzá? A panela é nossa, o tempero é nosso, o mel do Piauí é nosso, e o Nordeste continua fervendo. Em panela de barro, na América do Sul, na lata do lixo, no luxo da aldeia, no sul do sul global.
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