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Roberto Ponciano

Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia. Doutorando em Literatura Comparada

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Trump, Putin e a falência do pensamento maniqueísta na tal geopolítica

A guerra da Ucrânia acabará como começou: sem nenhum projeto progressista ou de emancipação e com a vitória anunciada de um projeto reacioniário

Trump e Putin (Foto: REUTERS/Kevin Lamarque)

Não sei o que existe em maior quantidade nesta nossa terra de Pindorama: pastor neopentecostal 171, coach capaz de transformar monge zen budista em serial killer, ou “especialista” em geopolítica global capaz de desvendar o presente, o passado, o futuro e até o futuro do pretérito do mundo inteiro. Um monte de especialista em cada grano salis da terra, capazes de explicar, no segundo seguinte ao início de um conflito no Butão, no pior estilo wikipedia, em detalhes mirabolantes todas as nuanças e desdobramentos do futuro conflito, todos os laços, interesses e desdobramentos da bagaça e dão, com a maior cara de quem acabou de fazer a barba com óleo de peroba, previsões sempre infalíveis do que acontecerá no futuro não só no Butão, mas em todos os Butões ou Botões alheios.

Não foi diferente com a guerra da Ucrânia. A quantidade de gente que fez previsões estúpidas e sem a menor chance de acontecerem, sem pestanejar, e prevendo uma guerra rápida e triunfal da Rússia, em no máximo 9 semanas, é impossível quantificar. 

Na falência da dialética no pensamento, cheio de dúvidas e possibilidades, convencionou-se se auto proclamar, no Brasil, a três por quatro, como marxismo, um rebaixamento da dialética a um maniqueísmo de possibilidades antropomorfizado, em que os Estados são de fato sujeitos coletivos que encarnam ideias e possibilidades e que agem imbuídos de uma teleologia na qual a providência divina foi substituída pela certeza da vitória final do socialismo, que precisa estar encarnado num destes entes reificados.

Assim, ao se analisar um conflito, em lugar de se tentar compreender todos os grupos humanos, frações de classes e interesses colidentes, razões de Estado e rivalidades locais, tribais ou históricas e traçar perspectivas, sempre incertas, sobre para onde pode caminhar a história (já que a história escapa de qualquer forma de determinismo), os entes estatais antropomorfizados encarnam vontades e ideias que substituem a análise.

China, Rússia, Brics, Brasil, EUA, corporificam um ente sempre metafísico que joga sempre o mesmo papel neste confuso tabuleiro de War, no qual o internacionalismo proletário, a crítica radical às guerras de conquista, imperialistas, sejam das potências hegemônicas centrais, sejam das potências militares periféricas, são substituídas pela ideia de que guerras de conquistam possam “apressar a nova fase do jogo”, que será a saída de um mundo unilateral para um mundo multipolar.

O problema é que nesta análise do desejo, não há nenhum processo emancipatório ou libertário como leimotiv do processo. A ideia fixa do “mundo multipolar” como solução não é nenhuma solução. Negar que a hegemonia dos Estados Unidos tenha sido posta em xeque e possa ser suplantada pela China ou por um outro conjunto de potências é uma estupidez, agora, achar que uma nova partilha do mundo, com a chegada de novas potências, mesmo que com governos socialistas, mas com uma lógica capitalista de comércio e desenvolvimento vá “libertar” ou “emancipar” o mundo é trocar a análise por uma confusa história pos factum, no qual vão se fazendo os ajustes ideológicos para que se combine a ideologia previamente construída com fatos que não a confirmam.

Óbvio que alianças comerciais como o Brics são desejáveis, no sentido de se contraditar uma lógica de predomínio e hegemonia dos Estados Unidos, mas acreditar que a ampliação do comércio mundial diversificando as exportações entre vários países, mas com a mesma lógica anterior, nos quais tanto os países centrais mais antigos, como os da UE, Japão e EUA, quanto as novas potências asiáticas, incluindo a China, constróem uma relação de venda de produtos manufaturados e compra de commodities, é negar todo o acúmulo de estudos e práticas sobre processos coloniais e neocoloniais de comércio. 

Sim, é desejável que o Brasil tenha um comércio exterior florescente com outros países inclusive a China, mas, quando a pauta de exportações do Brasil reduz-se a commodities e a de importação de produtos manufaturados, o mesmo e antigo processo de exploração colonial e de submissão a uma lógica imperialista de comércio (lembrando que o Imperialismo na visão leninista não é a guerra em si, mas à sujeição à financeirização e relações desiguais de comércio e divisão internacional do trabalho), a diversificação e ampliação do comércio em lugar de emancipar e ou reindustrializar o Brasil, induz ao crescimento do agro e ao retorno a um pensamento subserviente de papel do país nas relações internacionais, por conta de uma suposta “vocação agrícola” do nosso país.

O mundo capitalista contemporâneo é extremamente complexo e não, mesmo a ruptura da hegemonia dos Estados Unidos não levará os países periféricos a um processo de libertação ou reinserção produtiva soberana na divisão internacional do trabalho. Tomemos como exemplo o tal processo de diversificação e substituição da matriz energética. Chile, Argentina e Bolívia são os maiores produtores de lítio para baterias de todos os tipos, de carros a celulares. Basicamente, todo o processo de beneficiamento do lítio e dos outros metais da cadeia de produção das energias ditas alternativas e não poluentes (o que é uma grande mentira, haja vista que a cadeia produtiva do lítio e dos outros metais é extremamente daninha ao meio ambiente) desenvolve-se inteiramente fora destes países.

Fora do conto de fadas da “diversificação” dos parceiros comerciais e dos países para o qual os produtos são exportados, esconde-se o horror de que os países periféricos, mormente os da América Latina e África continuam cada vez e mais periféricos, e todo processo de modernização produtiva visa não ao bem-estar e emancipação de suas populações, mas à lógica extrativista, vá o metal ou a soja, ou o dendê ser exportado para os Estados Unidos, União Europeia ou China.

Mas, por que esta longa digressão (que não é digressão, mas justificativa), quando o título do texto remete para Putin e Trump? É porque coisas que parecem tão óbvias e simples deixaram de ser óbvias e simples. A lógica perdulária e destrutiva do capital, que impera não só nas relações com os Estados Unidos, mas ainda e também nas relações de comércio, produção e intercâmbio, inclusive dentro dos Brics, desapareceram da análise, para que esta se reduzisse a uma simples disputa entre EUA x China, que, para além das duas disputas geopolíticas e econômicas são co-dependentes nas suas relações e econômicas comerciais.

Isto está ligado a uma lógica não dialética de análise de socialismo que necessita de um modelo. O modelo, até 1991, era a União Soviética. Com a queda e dissolução do bloco do Socialismo realmente existente – e não há nenhuma ironia ou censura no uso deste nome e definição – com a derrota (e uso o termo derrota e não fracasso com intenção de definição e marcação de campo em que me situo, inclusive), quem pensava na história, de maneira não dialética, necessitava de um novo “modelo”.

O primeiro passo foi “reabilitar” a China, que num passo de mágica, passou, na crítica de alguns setores, para um país de “capitalismo de Estado” a um país do “socialismo que dava certo”. A ginástica mental e a cambalhota teórica de quem passou da crítica absoluta ao apoio acrítico à China só pode ser feito por quem empreendeu este mesmo processo, após abandonar a pureza albanesa. O fato é que o socialismo chinês é uma novidade e uma esfinge, que esperamos decifrar, mas que também pode devorar a nós todos, pois somente gente muito triunfalista pode afirmar que o complexo processo de produção chinês, com zonas de livre mercado muito extensas e controle da conta capital pelo Estado, ao fim e ao cabo. será desenvolvido num socialismo que dará conta de domar as centenas de novos bilionários que surgem e que podem usurpar o processo, como aconteceu na URSS. Impossível prever se o socialismo chinês caminhará para um futuro comunista ou para um retorno capitalista, é um processo novo, que está sendo estudado no mesmo momento histórico em que é criado e para o qual ainda não temos o distanciamento temportal para o julgar. O que pode se dizer, é que a defesa do Estado Chinês como um ente antropomorfizad que disputa um projeto de socialismo para a humanidade não condiz com o processo meramente econômico da diplomacia chinesa que, ao contrário do que aconteceu na URSS, em que pese todos os seus supostos pecados, não joga peso em nenhum processo revolucionário ou de libertação extra muralha da China.

Assim também foi feito com a Rússia de Putin. Putin é um político conservador, eslavófilo, anti-ocidental, anti-liberal mas não no sentido progressista, revolucionário socialista ou comunista. É antileninista e anticomunista. Num livro, infelizmente pouco lido no Brasil, “Quem são os amigos do povo, e como lutam contra ele os social democratas” – lembrando que social democratas aí é sinônimo de bolchevique – Lênin denuncia de forma bem intensa o grão chauvinismo russo, a romantização do MIR, do mujique, da romantização de uma “maneira russa de encarar o mundo” de um processo russo à parte do capitalismo. Lênin faz a análise de como era reacionária a permanência deste pensamento e, inclusive, faz a apologia de mudanças sociais capitalistas nos zemstvos, ou seja, nos territórios camponeses russos, como forma de expurgar aquela mentalidade feudal e reacionária. Toda ideologia comunista leninista é anti-grão chauvinista. Lênin é o responsável direto pela dissolução da “Grande Rússia”, o grande defensor da autonomia e dos direitos das nacionalidades, incluindo aí textos em defesa da soberania da própria Ucrânia. Putin é o saudoso da “Grande Rússia”, defensor de uma ideia romântica eslavófila e reacionária, que traz embutido neste pensamento pré-capitalistas ideais machistas e homofóbicos. É o herdeiro da burocracia que destruiu o estado socialista da União Soviética, faz parte daqueles criminosos que se transformaram, logo após a ascensão de Yeltsin, em donos do petróleo, do gás e das empresas russas.

É uma nacionalista e defende os interesses nacionais, no pior sentido que isto também se traduz. É óbvio que o Brasil terá que negociar com ele e é óbvio que, dependendo da circunstância, por interesse colidentes com os dos EUA ou da UE, poderá ser parceiro estratégico em acordos, tratados e iniciativas, até na ONU. Mas não, não é um líder progressista, e não, não cumpre com a Rússia o mesmo papel de incentivador das revoluções no mundo como cumpria a URSS. Seu tipo de parceiro ideal é Orban e todos aqueles “anti-ocidentalistas” cujos valores são um ataque ao que há de mais avançado e não ao que há de mais atrasado no capitalismo.

Na carência de modelos e de mitos, ou de personalidades a serem cultuadas, muitos esquerdistas fizeram uma aproximação bizarra inclusive de Putin a Stálin. O pior de Stálin foi o culto à personalidade e a vulgarização do marxismo, mas o papel de Stálin na história não pode ser reduzido a isto. Stálin está para a revolução russa assim como Napoleão está para a Revolução Francesa. Assim como Luis Napoleão, o sobrinho conservador de Napoleão não era a continuidade da política do tio, em que pesem as simpatias pessoais de Putin pela personalidade (e não pela ideologia) de Stálin, Putin não tem nenhum traço de continuidade com ele, haja vista que Stálin pode ter cometido muitos erros, mas não pode ser acusado, de forma nenhuma, de tentar restaurar ou beneficiar o capitalismo na Rússia, ao contrário de Putin, que governa para aqueles que assaltaram os meios de produção na antiga União Soviética.

O restultado da falta de análise foi o apoio patético e sem sentido de grande parte da esquerda brasileira da invasão da Ucrânia por Putin. É óbvio que Zelensky não vale o que o gato deixa na caixa de areia, mas reduzir a invasão da Ucrânia a uma “guerra preventiva” e justificar as razões do grão chauvinismo russo por uma geopolítica canhestra foi uma traição a Lênin e ao internacionalismo proletário, que não autorizaria de maneira nenhuma o apoio a esta guerra de conquista imperialista.

Putin e Trump ideologicamente tem muito em comum, inclusive nos seus entornos. Fala-se que Kiev tem seu batalhão Azov de soldados neonazistas, o que é verdade, mas elide-se que Putin também tinha seus mercenários neonazistas do grupo Wagner, que, aliás, chegaram a ameçar derrubar o próprio Putin se seus interesses não fossem atendidos, o que levou, inclusive ao assassinato de seu líder num prosaico acidente aéreo. Se no entorno de Trump há a Klan, se o vice de Trump foi à Alemanha saudar o partido nazista, ao mesmo tempo em que Donald Trump negociava o fim da guerra diretamente com Putin, é muita condescendência dizer que os apoios de ultra-direita – inclusive de um canhestro partido “Nacional Bolchevique” (o congênere russo do nacional socialista alemão) – são apenas exceções que fogem à regra. 

Há já uma “internacional fascista” europeia, que reuniu-se na Hungria no ano passado, inclusive com a participação, como grande estrela, de Eduardo Bolsonaro e de muitos grupos pró Putin russos. Há uma ideologia de governo conservadora e reacionária, ao mesmo tempo no Brasil que um representante desta ideologia protofascista, Pepe Escobar, duginista assumido, é incensado como se fosse uma estrela da esquerda.

O beijo de Trump em Putin revela que há uma falência desta análise maniqueísta falsamente marxista e que abriu mão do internacionalismo proletário e que tenta, inclusive, enquadrar Lula quando ele fala coisas óbvias do tipo, a Ucrânia não pode ser partilhada entre a Rússia e os Estados Unidos sem que sequer seu povo ou mesmo seu governo (ou arremedo de governo seja ouvido). E isto é um princípio de diplomacia muito importante, que tenta evitar que os países militarmente mais fortes possam decidir sobre o destino do mundo, povos e territórios, sem levar em consideração as oponiões e posições dos países mais fracos.

No cretinismo pró chauvinismo russo pode ter algum pretenso esquerdista festejando tal solução da guerra. Quando entendemos as conexões ideológicas entre o pensamento do entorno de Putin e do entorno de Trump, o quanto há de reacionarismo nisto e quanto este pensamento ameaça o futuro da humanidade, não há absolutamente nada a se celebrar.

A guerra da Ucrânia acabará como começou: sem nenhum projeto progressista ou de emancipação e com a vitória anunciada de um projeto reacioniário que evoca os feitos dos czares russos!

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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