Três vitórias em um julgamento
'Os que falam em anistia aos golpistas se enganam ou tentam enganar, dizendo que ela é possível', analisa a jornalista Tereza Cruvinel
No dia de hoje, um consenso destaca, no significado do julgamento de ontem, a ruptura com a tradição de golpes de Estado e de impunidade para seus autores, o enterro do projeto militar de tutelar a Nação, e tudo o mais contido no que o ministro Roberto Barroso chamou de “ciclo de atraso”. Eu agrego, a este ineditismo demarcador, duas outras vitórias contidas no desfecho da ação penal 2668.
Desfecho parcial, pois ainda faltam a publicação do acórdão, os recursos e o julgamento deles, antes do início da execução da pena, que deve acontecer entre novembro e dezembro.
No Brasil do “atraso”, ao final de cada ciclo autoritário, golpe ou tentativa de golpe, acordos feitos “por cima”, entre as elites e com exclusão do povo, as transições negociadas, garantiram a impunidade dos tiranos.
O julgamento e as condenações de agora foram possíveis porque, 37 anos depois da promulgação da Constituição de 1988, somos hoje um país com um grau de amadurecimento democrático sem precedentes em nossa própria História. E dele vieram as duas outras circunstâncias que realçam o significado do desfecho.
Agora tínhamos, além da garantia constitucional de que crimes contra a democracia não podem ser perdoados, indultados ou anistiados, a vigência da recém-criada Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, a Lei 14.197/2021, que substituiu a antiga Lei de Segurança Nacional da ditadura. Ironicamente, ela foi sancionada por Bolsonaro.
Quando ele começou a usar a velha LSN contra críticos, jornalistas e opositores, uma forte reação no Congresso, no Judiciário e na sociedade civil clamou pela revogação daquele entulho autoritário. O Congresso aprovou, então, o projeto de lei que a substituiu por um novo capítulo no Código Penal, que passou a ser chamado de “Crimes contra o Estado Democrático de Direito”. Em setembro de 2021 Bolsonaro sancionou o projeto de lei com alguns vetos (como o do artigo que criminalizava a “comunicação enganosa em massa”, as fake news). Mais uma vez ele nos impediu de avançar.
A nova lei permitiu a condenação de Bolsonaro e mais sete réus pelos crimes de tentativa de Golpe de Estado e tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, os mais emblemáticos do julgamento e que muito contribuíram para a formação das penas.
Os crimes de formação de organização criminosa armada e os relacionados com a vandalização do patrimônio público e dos bens tomados estão em outros diplomas legais.
Devemos, pois, celebrar a efetividade da lei de defesa da democracia, em seu teste crucial.
O terceiro ponto que destaco está no fato de ter o julgamento representado também, juntamente com outras atitudes já tomadas pelo Poder Executivo, uma forte afirmação da soberania nacional: ocorreu sob grande pressão do governo imperial dos EUA, que além de chantagear o país com a imposição de tarifas comercialmente injustificadas, cassou vistos de alguns ministros do STF e enquadrou o Alexandre de Moraes na sua Lei Magnitsky.
Agora mesmo o secretário de Estado norte-americano, Marco Rubio, promete que seu país vai “tratar adequadamente” Moraes e seus colegas de STF pela aplicação das leis brasileiras aos golpistas, processo por ele chamou de caça às bruxas, repetindo termo usado por seu chefe Donald Trump.
Durante o julgamento, nenhum ministro pronunciou o nome de Trump. Certamente lembraram-se de suas ameaças mas, impávidos, não hesitaram em fazer o que o país esperava que fizessem no cumprimento de seus deveres.
Houve uma exceção, é claro, a do ministro Fux, mas agora o que importa é falar dos quatro que garantiram esta grande vitória da democracia e da justiça.
Eu apontaria apenas uma falha, talvez litúrgica, no encerramento do julgamento, depois de fixada a dosimetria das penas. O ministro Dino chegou a dizer que nenhum juiz tem prazer em condenar alguém mas faltou, do conjunto, o reconhecimento de que aquele era um momento de vitória da lei, mas também um momento de tristeza pelo fato de ele ter sido necessário.
Feliz mesmo será a sociedade que não precise condenar ninguém, muito menos um ex-presidente e altos oficiais militares, por atentarem contra a democracia protegida pela sagrada letra da Constituição.
Sem anistia
Uma anistia aos condenados seria a vitória do passado, dos acordos “por cima”, dos pactos entre as elites.
Os que falam em anistia aos golpistas se enganam ou tentam enganar, dizendo que ela é possível. Não haverá anistia, ainda que consigam aprovar um projeto no Congresso. Lula o vetaria e, ainda que derrubassem o veto, o Supremo decretaria tal lei inconstitucional.
Alexandre de Morais advertiu claramente disso os enganados e os enganadores, ao dizer, no final do julgamento: “Não cabe indulto pelo presidente, não cabe anistia pelo Congresso e não cabe perdão judicial pelo Poder Judiciário em crimes contra a democracia, crimes que atentem contra o Estado Democrático de Direito, crimes que atentem contra as cláusulas pétreas da Constituição.”
Não creio que o presidente da Câmara, Hugo Motta, sucumba às pressões e paute a votação de algum projeto de anistia. Ele não teria nada a ganhar com isso, muito pelo contrário.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.