Tagliaferro, Estadão e a tosa do porco
A audiência de Eduardo Tagliaferro no Senado produziu mais ruído do que provas, mas ganhou manchete no Estadão e tempo precioso para a defesa de Jair Bolsonaro
Como no ditado popular frequentemente lembrado pelo jurista Lenio Streck, muito grito e pouco pelo, o depoimento de Eduardo Tagliaferro no Senado produziu barulho, mas não entregou provas. A audiência convocada por Magno Malta (PL-ES) na Comissão de Segurança Pública foi anunciada como espaço para debater o relatório da Civilization Works e ouvir o ex-chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE. Na prática, transformou-se em palanque para parlamentares bolsonaristas contestarem o julgamento em curso no Supremo Tribunal Federal, que acontecia no mesmo horário.
Flávio Bolsonaro (PL-RJ), primogênito do ex-presidente e o filho que aprendeu com os escândalos que expuseram a família a agir abaixo do radar, presidiu a sessão com cálculo frio. Abriu os trabalhos afirmando que o depoimento coincidia com “aquela farsa no Supremo Tribunal Federal que estão chamando de julgamento do presidente Bolsonaro e do núcleo ali acusado da tentativa de golpe de Estado da Disney. Uma narrativa completamente mentirosa, sem amparo probatório nenhum. Um processo completamente manipulado pelo ministro Alexandre de Moraes desde o seu início”. Ao contrário dos demais senadores, que competiam em tons cada vez mais inflamados, Flávio manteve postura controlada e estratégica, extraindo da audiência o que mais interessava à defesa de seu pai: tempo.
Eduardo Girão (Novo-CE) descreveu o cenário como uma ditadura da toga e afirmou que Tagliaferro seria preso caso retornasse ao Brasil, ainda que essa possibilidade decorra da denúncia formal apresentada pela Procuradoria-Geral da República por vazamentos, obstrução e tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, processo que já motivou pedido de extradição. Marcos Rogério (PL-RO) acusou Luís Roberto Barroso de agir como politiqueiro ao falar em apagar extremismos, um raro desvio de foco em meio à artilharia quase unânime contra Alexandre de Moraes, gesto que soou como um lapso de pluralidade no coro inflamado da sessão. Damares Alves (Republicanos-DF) buscou sacralizar o depoimento, afirmando que Deus levanta os improváveis para realizar o impossível e apresentando Tagliaferro como instrumento divino em um processo que, segundo ela, carrega digitais de providência. Uma terça-feira normal no ecossistema bolsonarista.
O momento mais insólito, porém, foi protagonizado pelo próprio Tagliaferro. Durante a audiência, declarou que Alexandre de Moraes havia bloqueado seu canal no YouTube “naquele exato momento” em que o ministro estava no plenário do Supremo conduzindo o julgamento dos réus do 8 de janeiro. A sugestão de que Moraes teria agido simultaneamente em duas frentes, talvez por força do pensamento, escancarou o caráter fantasioso de parte de seu depoimento.
A denúncia
Com base nos documentos, a denúncia central de Tagliaferro é de que Alexandre de Moraes teria ordenado a criação de um relatório técnico com data retroativa para justificar uma operação da Polícia Federal contra empresários apoiadores de Jair Bolsonaro em agosto de 2022. Segundo ele, a operação teria se baseado unicamente em uma reportagem jornalística, e o relatório, que alega ter sido produzido dias após a ação policial, foi inserido no processo com uma data anterior para simular a existência de uma investigação prévia. Como prova, apresentou metadados que indicariam que o documento foi criado em 28 de agosto de 2022, mas datado oficialmente como 22 de agosto. A denúncia se estende ainda a uma suposta coordenação entre Moraes e o procurador-geral da República, Paulo Gonet, para combinar alvos de investigação. Se tais alegações fossem comprovadas, as consequências seriam severas: a anulação de provas obtidas na operação, a abertura de um processo criminal contra o magistrado e, politicamente, a utilização do caso pela oposição para pedir o impeachment de Gonet e solicitar habeas corpus para Bolsonaro e outros réus do 8 de janeiro.
A ausência de materialidade do escândalo de proveta ficou exposta também na reação da mídia. Tagliaferro disse que, em relação à CNN, a emissora lhe deu como desculpa. “Eu converso com o âncora da matéria, da CNN, há quase um ano, ele escreve, reescreve, ele foi entendendo tudo, na verdade ele viu tudo”. Apesar desse longo acompanhamento, a emissora desistiu da publicação: “no último dia, eu tive a triste notícia de que a tríade da CNN virou e falou que precisava se fazer uma prova pericial”. O episódio ilustra que, sem a comprovação da materialidade das acusações, a tentativa de transformar o caso em escândalo midiático perdeu fôlego e foi abandonada.
Se veículos tradicionalmente alinhados à direita preferiram se afastar da narrativa de Eduardo Tagliaferro, o Estadão resolveu abraçar a causa. O jornal publicou hoje (3), em meio ao segundo dia de julgamento onde Moraes foi o maior alvo dos advogados em uma coreografia bem ensaiada, reportagens apresentando os documentos levados por ele ao Senado e reproduziu suas acusações de que Alexandre de Moraes teria adulterado a data de um relatório técnico para justificar uma operação da Polícia Federal. Além disso, noticiou o movimento de senadores da oposição que, a partir dessas denúncias, passaram a articular pedidos de impeachment do procurador-geral Paulo Gonet e habeas corpus para Jair Bolsonaro e outros réus do 8 de janeiro.
A fala de Tagliaferro, apresentada como se fosse uma revelação, mostrou-se frágil não apenas pela ausência de materialidade, mas também pela falta de originalidade. O conteúdo já havia circulado em versões anteriores e sequer encontrou respaldo consistente no ecossistema midiático da direita, que preferiu relativizar ou silenciar diante da inconsistência dos documentos. Essa rejeição interna é reveladora. Se nem mesmo veículos alinhados ao bolsonarismo sustentam a narrativa, fica evidente que o objetivo não é a verdade factual, mas a criação de ruído no processo político e judicial.
O recurso a um denunciante sem lastro funciona como engrenagem de uma estratégia mais ampla: não se trata apenas de ganhar tempo cronológico, mas de acumular tempo em três dimensões distintas. Tempo de articulação, ao permitir que a defesa e os aliados reordenem seus próximos movimentos. Tempo na economia da atenção, ao ocupar manchetes e agendas de discussão em paralelo ao julgamento real. E, sobretudo, tempo de tela, que em si já é um ativo político, utilizado para produzir confusão, desgastar instituições e manter viva a narrativa de perseguição.
Para bagunçar ainda mais o cenário, na tarde do mesmo dia 2, enquanto a audiência no Senado e o julgamento no Supremo ocorriam, Donald Trump convocou uma coletiva de imprensa sobre o chamado Domo de Ouro. Durante mais de meia hora, falou de segurança e defesa, mas não mencionou Jair Bolsonaro nem foi questionado pelos jornalistas a respeito do aliado brasileiro. O silêncio expôs a solidão estratégica do ex-presidente no tabuleiro internacional, contrastando com o ruído ensaiado por seus defensores em Brasília.
Esse expediente é recorrente na trajetória da extrema direita brasileira. Primeiro lança-se uma suspeita, depois ela é instrumentalizada no Parlamento para pressionar o Judiciário e, por fim, é repassada às redes digitais como prova de perseguição. Já tratei desse movimento em um artigo anterior, mostrando como o bolsonarismo tenta emplacar uma espécie de nova Vaza Jato contra Alexandre de Moraes, mas sem provas consistentes. A engrenagem se fecha quando os advogados dos réus pedem acesso aos documentos, prolongando prazos e construindo a imagem de um julgamento contaminado por omissões ou supostas provas negligenciadas. Enquanto senadores como Magno Malta e Eduardo Girão se mostravam desesperados em exibir fidelidade ao cadáver político de Jair Bolsonaro, Flávio Bolsonaro conduzia a sessão com frieza calculada. No fim, o que restou foi apenas barulho, a perfeita encarnação da tosa do porco.
No fim, a encenação no Senado pretendia eternizar o 2 de setembro de 2025 como o dia da vergonha. Mas a tentativa de inscrever essa data no calendário nacional só reforça a comparação com outros momentos em que a história brasileira realmente se manchou: o 31 de agosto de 2016, quando Dilma Rousseff foi derrubada por um golpe parlamentar; o 16 de dezembro de 1976, quando a ditadura invadiu a Casa do Massacre da Lapa e assassinou militantes da resistência; o 13 de dezembro de 1968, quando foi decretado o AI-5, instaurando a fase mais sombria do regime militar; o 23 de julho de 1993, quando oito jovens foram executados na chacina da Candelária; e o 8 de janeiro de 2023, quando a extrema direita atacou diretamente as instituições da República. A lista agora pode incluir também o 3 de setembro de 2025, quando, durante o julgamento histórico da tentativa de golpe, a imprensa resolveu transformar uma denúncia sem provas em espetáculo político e até em manchete de salvação para réus de golpe de Estado.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.