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Sara Goes

Sara Goes é jornalista e âncora da TV 247 e TV Atitude Popular. Nordestina antes de brasileira, mãe e militante, escreve ensaios que misturam experiência íntima e crítica social, sempre com atenção às formas de captura emocional e guerra informacional. Atua também em projetos de comunicação popular, soberania digital e formação política. Editora do site codigoaberto.net

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O fantasma dos EUA sobre nossas cabeças

Um avião branco e sem marcas da Força Aérea dos EUA cruzou o céu brasileiro e bastou sua aparição para que antigos fantasmas de intervenção ressurgissem

Avião da CIA em Porto Alegre (Foto: Wikimedia Commons)

Na tarde de 19 de agosto de 2025, o céu brasileiro foi atravessado por um avião branco e sem marcas aparentes. Tratava-se de um Boeing C-32B da Força Aérea dos Estados Unidos, aeronave associada a operações especiais e sigilosas. Oficialmente, era apenas um transporte de diplomatas, mas sua presença em Porto Alegre e depois em São Paulo desencadeou um frenesi de interpretações que, rapidamente, transformaram o voo num símbolo de invasão iminente. O episódio não pode ser compreendido isoladamente: ele ocorreu no mesmo período em que os Estados Unidos deslocavam destróieres e submarinos nucleares para o Caribe, sob o pretexto da guerra às drogas, numa escalada que tinha como alvo direto a Venezuela, mas que afetava de modo imediato todo o entorno regional, inclusive o Brasil.

O Caribe em chamas e a doutrina renovada

As movimentações no Caribe, que envolveram três destróieres da classe Arleigh Burke e milhares de militares, não se justificam por operações de interdição ao narcotráfico, mas como demonstração de força e de coerção geopolítica. A administração Trump reviveu a Doutrina Monroe sob novas roupagens, usando a narrativa da guerra às drogas para legitimar ações militares contra governos classificados como hostis. Ao acusar Nicolás Maduro de liderar o chamado Cartel dos Sóis e associar a Venezuela ao narcoterrorismo, Washington abriu caminho para tratar a crise como questão de segurança nacional e, assim, mobilizar ativos militares de ponta.

Mais que a Venezuela, o alvo dessa coreografia bélica é a rede de alianças internacionais. A presença de submarinos nucleares e mísseis de longo alcance serve de recado a Moscou e Pequim, apoiadores de Caracas. O Caribe torna-se, portanto, não só uma arena de disputa direta, mas também um corredor estratégico de vigilância e intimidação, que projeta seus efeitos até o Atlântico Sul e pressiona indiretamente o Brasil.

O Brasil em estado de nervos

O sobrevoo do C-32B em território brasileiro, em meio a essa conjuntura, ativou um estado de alerta que não é apenas diplomático, mas psicológico. O país, historicamente, guarda cicatrizes da intervenção norte-americana. Durante a ditadura militar, a influência dos Estados Unidos foi decisiva em operações de vigilância, repressão e formação de quadros das Forças Armadas, deixando marcas profundas na cultura política e na imprensa. Essa herança ainda pesa: diante de qualquer movimento inusitado, mesmo quando se trata de um voo rastreável, a memória nacional conjura fantasmas de soberania violada.

Foi nesse ambiente que a histeria coletiva eclipsou um detalhe básico: um país que se prepara para atacar o outro não envia autoridades e cidadãos ao território em questão, mas os retira. Soma-se a isso uma ingenuidade recorrente, como se a presença do Boeing branco significasse a súbita chegada da CIA ao Brasil. Ocorre o contrário, a CIA nunca saiu. Desde a ditadura militar, e mesmo antes dela, a agência mantém canais permanentes de influência, informação e pressão. O voo não inaugurou uma ameaça, apenas reacendeu, de forma espetacularizada, um fantasma que já habita a história brasileira.

O episódio reacendeu também as tensões entre Itamaraty e Washington. Em meio a tarifas punitivas contra produtos brasileiros e à pressão diplomática aberta, a chegada do avião sem identificação clara simbolizou mais que uma visita técnica. Foi percebida como demonstração calculada de poder, um lembrete de que a assimetria entre os dois países pode se manifestar sem aviso, por meio de sinais sutis e ao mesmo tempo intimidadores.

A sombra da ditadura e o jornalismo sob pressão

A histeria em torno do avião americano também revela como o jornalismo brasileiro ainda se move sob a sombra autoritária. Na ditadura, a imprensa foi dividida entre a cooptação e a resistência clandestina. Hoje, mesmo em campo progressista, o reflexo de reagir a qualquer gesto dos Estados Unidos como prova de conspiração resgata um trauma sem mediações críticas. O pânico moral gerado pelo sobrevoo foi mais uma narrativa de medo do que uma investigação sobre os fatos.

A internet amplifica esse processo. Plataformas de rastreamento de voos permitiram acompanhar a rota do C-32B em tempo real, mas a abundância de informação não significou esclarecimento. Pelo contrário, cada detalhe técnico foi incorporado como combustível para a suspeita. A lógica digital do clique e da viralização impôs ao jornalismo a tentação de narrar antes de verificar. A pressa em converter o episódio em manchete reduziu a complexidade a uma disputa emocional, reforçando a sensação de ameaça externa sem a devida contextualização.

O que de fato aconteceu

A reconstrução dos trajetos mostra que o pouso em Porto Alegre coincidiu com uma manifestação em frente ao consulado dos Estados Unidos. Tudo indica que se tratava de uma operação de contingência para proteger instalações diplomáticas, realizada por uma equipe de resposta rápida. Em seguida, a aeronave seguiu para São Paulo, centro estratégico de inteligência e finanças, onde permaneceu mais tempo. A explicação oficial, de transporte de diplomatas, não é necessariamente falsa, mas incompleta. A missão serviu ao mesmo tempo a objetivos táticos de segurança e a propósitos estratégicos de bastidores.

No entanto, o mais revelador não está no conteúdo da operação, mas na forma como ela foi percebida. O avião fantasma materializou o estado de nervos de um país habituado a ver nos Estados Unidos não só um parceiro econômico, mas um vigilante onipresente. Essa percepção, alimentada por uma mídia refém da urgência digital, mostra como o jornalismo progressista, que deveria oferecer distanciamento crítico, pode se perder em narrativas conspiratórias que, ao final, reforçam a vulnerabilidade simbólica que denuncia.

Entre a histeria e a lucidez

O episódio do C-32B não foi o prenúncio de uma invasão, mas sim um espelho da fragilidade nacional. Ele expôs como a herança de 1964 ainda contamina a forma como o Brasil lê os Estados Unidos, como a disputa no Caribe e na Venezuela se projeta sobre nós e como a comunicação digital mina o jornalismo que deveria explicar, mas prefere amplificar. O avião branco que cruzou o céu brasileiro não trouxe tropas, mas desencadeou uma tempestade de significados. O verdadeiro risco não está apenas nos arsenais que rondam a região, mas na dificuldade de separar fatos de fantasmas.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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